quinta-feira, fevereiro 03, 2011

ALBERTO TAMER

Só cortar renda não resolve
ALBERTO TAMER
O ESTADO DE SÃO PAULO - 03/02/11


Primeiro, o mundo temia a recessão, depois a deflação e agora a inflação. No Brasil foi mais ou menos assim. Agora, a tese é cortar a renda para reduzir a demanda e conter a inflação. É uma tese parcial e perigosa, que pode levar a erros de difícil reversão.

O País superou a recessão, que durou apenas dois trimestres, e saiu crescendo 8% porque o governo havia incentivado fortemente o consumo. Só errou em não fazer o mesmo com a produção. Por exemplo: a renda do salario mínimo aumentou 53% acima da inflação em oito anos. Houve ainda o Bolsa Família e crédito a prazo mais longo.

Isso levou a uma alta do consumo nos últimos oito anos que não foi totalmente atendida pela produção industrial. As famílias ousaram mais que as empresas, em geral.

Houve investimento, pode-se argumentar, mas continuam marcando passo em torno de 18%. É pouco. É preciso muito mais, pelo menos 25%, para haver crescimento equilibrado e consistente.

Está aí a origem do gap (não é "rombo"!) entre produção, consumo e demanda, que são conceitos diferentes. Pode-se dizer que consumo é o que foi comprado e consumido; demanda, o que o mercado exige e nem sempre é atendido. Uma explicação simples que os economistas não costumam fazer, pois acham que todo mundo sabe.

Corta a renda! Esse tem sido o mote nas últimas semanas. Reduzam o crescimento da renda para conter a pressão sobre os preços! Corta tudo! Que a economia entre num regime de emagrecimento forçado porque, se não o fizer, engorda demais e acaba e morrendo do coração.

A coluna toma a liberdade de discordar em parte dessa teoria simplista. Ao analisar a inflação, defensores do corte não diferenciam os itens que compõem a alta dos preços. Grande parte da pressão vem de fatores externos, não internos. É o aumento expressivo das commodities no mercado internacional que contamina o mercado interno.

É principalmente a alimentação, que está mais cara. A produção agropecuária do Brasil vem batendo recordes mas, num mundo globalizado, não pode deixar de ser afetada pelas cotações internacionais.

Mesmo assim, vamos cortar! O argumento continua válido, mas é vago e parcial. Pode levar a excessos de difícil reversão..

Todos concordam - e a coluna também - que o novo governo deve cortar gastos, como prometeu. Os economistas mais equidistantes alertam para que se faça um distinção muito clara entre "gastos" e "investimentos", que a mídia confunde sempre. É preciso avaliar até onde os "gastos" públicos - e aqui se incluem Estados e municípios - pesam no aumento da demanda.

Mas tem a alimentação! Os "cortistas" afirmam que o problema da alta dos preços dos alimentos não é de oferta (há produção e estoques), mas de demanda interna, externa e especulação financeira, estimulada pelo maior rendimentos em commodities.

Neste cenário, no entanto, não dá para separar um fato de outro. É aquela história de que, "na prática, a teoria é outra".

Aqui, de novo, antes de se concentrar em corte drástico na renda e no consumo - esse mesmo consumo que nos salvou quando a economia mundial afundou - não seria mais prudente colocar no mercado os estoques do governo?

É pouco? Pode ser, mas vai ajudar. Eles existem não só para atender à demanda, mas para administrar grandes oscilações dos preços também.

Subsídio, subsídio! Ah!, mas isso é subsídio! O governo não pode colocar no mercado a um preço menor do que pagou, não pode perder dinheiro!

E quem disse que não pode? Quem disse que é temerária a política de subsidiar "temporariamente" alimentos para conter a inflação? Ela não vai proporcionar um crescimento sustentável, com aumento da receita, que acaba compensando?

Os estoques não existem também para isso? Um dia se perde, em outros se compensa. E assim, se chega ao equilíbrio em médio prazo. Blasfêmia econômica? Ora, ora, o importante no momento é impedir que os preços dos alimentos levem a inflação a níveis insustentáveis, acima até de 8% (sem terrorismo).

O Brasil vem obtendo safras recordes que atenderam ao consumo graças a inovações espetaculares como a soja no cerrado, que o mundo copia, adapta e admira.

Então é a solução? Não, não é só isso. A coluna está consciente de que o desafio é mais complexo, mas a solução de "só cortar renda" para reduzir a demanda é simplista e perigosa.

É preciso cuidado, muito cuidado.

Vamos com calma. Vejam o que se fez de certo no passado para evitar decisões que levam a erros difíceis de reverter. E não só por questões sociais - as pessoas devem continuar comprando com sua renda o que nunca antes antes haviam consumido -, mas econômicas. Numa economia ainda não madura, como a do Brasil, o consumo interno é quase tudo.

Os países ricos como os EUA e os da zona do euro estão tentando desesperadamente e ainda não conseguiram seguir este caminho, que já estamos trilhando há muito tempo, , acompanhado só agora pela China

Que se pense duas vezes antes de mudar o rumo.

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