Anseios da rua árabe
Merval Pereira
O GLOBO - 12/02/11
O fato de que durante os vários dias que duraram as manifestações no Egito, até o fecho com a renúncia do ditador Hosni Mubarak, não ter havido nem bandeiras de outros países queimadas, nem slogans que não fossem relacionados com as reivindicações nacionais, é "inédito e muito significativo" para Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal e atual Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações.
Para ele, parece claro que, no casos da Tunísia e do Egito, há uma reivindicação comum expressa pela chamada "rua árabe" de liberdade, de democracia, de melhores condições de vida, de mais justiça social e igualdade de oportunidades.
Em ambos os países, em que a demografia é marcadamente jovem, ressalta Sampaio, "o povo reclamou o direito ao futuro, o qual passa sem dúvida pelo direito ao trabalho e a uma vida digna".
A Aliança das Civilizações é uma iniciativa das Nações Unidas que objetiva mobilizar a opinião pública em todo o mundo para superar preconceitos e percepções equivocadas que, muitas vezes, levam a conflitos entre Estados e comunidades heterogêneas.
A Aliança de Civilizações foi proposta pelo presidente do governo da Espanha José Luis Zapatero, logo após os atentados terroristas ocorridos em 2004 no metrô de Madri, e é copatrocinada, desde o início, pelo primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.
Um grupo de Alto Nível composto por 20 personalidades, entre elas o sociólogo brasileiro Candido Mendes, organizou a atuação da Aliança.
Candido Mendes é embaixador brasileiro para a Aliança das Civilizações e secretário-geral da Academia da Latinidade, criada em 1999 para discutir a questão do multiculturalismo dentro de um universo já ameaçado pela hegemonia dos Estados Unidos, mesmo antes dos atentados de 11 de setembro de 2001.
Reúne intelectuais, na maioria de países de origem latina - seu presidente é o ex-secretário da Unesco Frederico Mayor, e um dos vice-presidentes é o ex-presidente de Portugal Mario Soares -- , e se propõe a intermediar as relações do Ocidente com o Oriente, tendo como base o fortalecimento da democracia.
Para Candido Mendes, "a onda de democracia começada pela Revolução de Jasmim é uma expressão autêntica do inconsciente coletivo do mundo árabe, que passou diretamente do colonialismo para a presença de governantes instalados, há décadas, no poder e sem indícios de deixarem as suas investiduras".
Para ele, esse movimento é mais claro na Tunísia, "o país civicamente mais adiantado da área, na força da sua classe média e de seu peso universitário".
O que aconteceu no Egito, para Candido Mendes, foi um efeito mimético "sem qualquer intelligentsia que desse um teor, de fato, de mudança ou de verdadeira revolução frente ao status quo".
Ele vê como "risco" a "instalação regressiva de movimentos como a Irmandade Muçulmana", com o clamor pela democracia sendo "absorvido pelo reducionismo fundamentalista".
Candido Mendes chama a atenção para o que "pressagia o Irã de Khamenei, na reprodução, agora, no Cairo, do movimento de Khomeini", o que levaria a uma "radicalização imediata e subsequente do conflito com Israel, e a dimensão do confronto atômico que poderá deflagrar-se entre Jerusalém e Teerã".
Para ele, o conflito egípcio "passou do regional ao global".
Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal e Alto Representante da ONU para a Aliança das Civilizações, confrontado com a possibilidade de que essa onda de reivindicações na região decorra não de um desejo de democratização, mas seja um mero reflexo das dificuldades por que passam países árabes, com desemprego alto e inflação crescente, chama a atenção para o fato de que "a democracia não se esgota na realização de eleições livres e no Estado de Direito".
O governo "do povo e para o povo" significa, ressalta Sampaio, que "liberdade, igualdade e direitos - direitos políticos, mas também econômicos, sociais e culturais - estão na raiz da democracia".
Mesmo que tenham acontecido na mesma ocasião, e resultado na deposição de antigas ditaduras, as revoltas na Tunísia e no Egito não devem ser comparadas, analisa Jorge Sampaio: "Cada país é um caso e não gosto de tratar as situações de uma forma monolítica, as generalizações são sempre simplificadoras e por vezes reducionistas. Não há dois países iguais, mas há, claro, semelhanças e tendências comuns".
Sampaio não crê que se possa dizer que a sociedade civil é forte nesses países, "como também o não é em outros países vizinhos".
Mesmo que considere que uma sociedade civil forte "está sempre mais apta a reagir a abusos, a defender o interesse coletivo e a fazer prevalecer o bem comum", o ex-presidente de Portugal lembra que "essa não é uma condição sine qua non de mudança".
Ele cita o caso do Egito, em que "a união fez a força, e triunfaram os ideais da democracia, da liberdade e dos direitos humanos".
A "extensa e bem preparada classe média egípcia e o fato de a sociedade ser relativamente aberta" facilitaram o sucesso desta mudança histórica, analisa Sampaio.
Se o fato de não haver uma sociedade civil organizada não impediu o êxito do movimento, o ex-presidente de Portugal destaca que essa falta "poderá tornar o processo de transição mais complexo e incerto. Não esqueçamos que a democratização é um processo longo que exige compromissos e muita concentração. Um regime pode cair de um dia para o outro ou, pelo menos, num breve lapso de tempo. Mas o mesmo já não acontece com a construção da democracia que mais se assemelha uma obra morosa de arquitetura". (Amanhã: o risco da radicalização, o papel dos Estados Unidos e de Israel)
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