A herança maldita da inflação
MARIA INÊS DOLCI
FOLHA DE SÃO PAULO - 21/02/11
O retorno da inflação é o castigo de governos gastadores; contudo, eles fazem, nós pagamos"TEM SEMPRE UM DIA em que a casa cai/ pois vai curtir seu deserto, vai./ Mas deixe a lâmpada acesa/ se algum dia a tristeza quiser entrar." Belíssimos versos da música "Regra Três", de Toquinho e Vinícius de Moraes, sintetizam o que enfrentamos com o retorno da inflação.
Que se alastrou rapidamente enquanto o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva se dedicava integralmente a eleger sua sucessora: está nos serviços, na comida, no lazer, nos transportes, na saúde, em tudo, lamentavelmente.
É, sem dúvida, o castigo de governos gastadores, populistas, que pensam no hoje, no agora, parodiando outro gênio da música, Renato Russo, "como se não houvesse amanhã". Castigo, contudo, que é repartido com quem não ordena, não decide, não contrata desbragadamente e não cria factoides em forma de programas de aceleração do crescimento.
Ou seja, "eles" fazem, "nós" pagamos, principalmente o consumidor mais pobre. Porque são os que ganham menos que comprometem a maior parte de sua renda com comida, com transporte coletivo, com saúde e com educação.
Então, dá-se com uma das mãos reajustes reais do salário mínimo, programas de transferência de renda e se retira com outra, pela carestia generalizada.
Apesar disso, enquanto o Banco Central aumenta os juros e o governo federal jura que corta gastos, temos de fazer algo. Não nos esqueçamos de que, pelas redes sociais, o mundo elegeu o presidente do país mais importante (Barack Obama) e apeou do poder, após três décadas, um ditador (Hosni Mubarak).
Em primeiro lugar, temos de boicotar, sempre que possível, empresas e prestadores de serviço que aumentarem preços em 20%, 30% ou 40%. Cartão vermelho para eles, pois a inflação ainda não chegou aos dois dígitos -ao menos oficialmente.
Vamos postergar compras a prazo com juros exorbitantes. Pesquisar preços, hoje, é muito mais fácil do que nos anos 1980 e 1990, quando a inflação era soberana absoluta do mercado. Basta entrar em sites especializados, ou nas próprias lojas virtuais.
Em relação a serviços, a situação é mais complicada. Aí, tem de funcionar a negociação prévia, pois a conta pode ser salgada demais para o seu bolso.
Muita atenção, também, à alimentação fora de casa. Como o custo da carne bovina disparou, é evidente que churrascarias e demais restaurantes os repassaram a seus clientes. Não significa, contudo, que devamos aceitar e torrar o dinheiro tão difícil de ganhar.
Talvez tenhamos de fazer o churrasco em casa, com cortes como a costela bovina, enquanto o preço da picanha passeia na estratosfera.
Compras coletivas, com cautela e sem consumismo, podem ajudar a obter descontos, bônus e outras promoções, com os devidos cuidados.
Denunciar abusos no Twitter, no Facebook e em outras redes sociais também fortaleceria essa reação anti-inflacionária.
É óbvio que não domaremos a inflação sem que os governos federal, estaduais e municipais façam seu trabalho corretamente. Idem os parlamentares e o Judiciário.
Um exemplo: os preços da gasolina são "aditivados" pelo ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), pelo PIS (Programa de Integração Social), pela Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e pela Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico).
Quando a cotação do barril de petróleo despencou mundialmente, continuamos pagando caro nos postos de gasolina, financiando a gastança. Então, quem vota em criadores ou aumentadores de impostos é indiretamente responsável pelo crescimento do custo de vida.
Quem paga qualquer preço por um produto e serviço também.
Temos de nos preparar para rebater pressões de reajuste de mensalidades escolares e condomínio.
Se o consumo consciente é atributo da cidadania e da proteção ambiental, em momentos como o que vivemos agora é ainda mais importante gastar com planejamento e com cuidado. O que os senhores do poder não fizeram. Para nós, a verdadeira herança maldita.
*MARIA INÊS DOLCI, 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores.
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