A farra final
Miriam Leitão
O Globo - 30/12/2010
O ano fiscal foi um desastre. Quando há um forte crescimento, como em 2010, a receita aumenta e fica mais fácil atingir as metas de economia de recursos para continuar a trajetória de queda da dívida e do déficit. O governo fez manobras fiscais, investiu menos do que podia e, mesmo assim, não cumpriu a meta. Até 2009, a receita da União cresceu 132% no governo Lula.
É preciso até um certo esforço para, num ano em que as receitas aumentaram 28%, não cumprir a meta de superávit primário. Mas foi o que aconteceu em 2010, como mostrou a reportagem de Martha Beck em O GLOBO de ontem. O desastre das contas públicas no ano fica ainda mais claro com a notícia da jornalista Regina Alvarez, também na edição de ontem, de que o governo só executou 26% do total dos investimentos previstos. O orçamento permitia investir R$ 69,5 bilhões, mas apenas R$ 18,4 bilhões foram concluídos e pagos até o dia 25. O número sobe a R$ 40,7 bilhões com os pagamentos feitos em 2010 de despesas de anos anteriores, os restos a pagar.
Foi o ano em que o governo arrecadou demais, gastou demais, investiu menos do que podia, fez truques fiscais para inchar os cálculos de superávit primário, não chegou na meta e terminou 2010 com déficit nominal.
O desempenho fiscal do governo mostra que a conversa da equipe do Ministério da Fazenda de que em 2009 estava se fazendo “política contracíclica” era conversa fiada. Essa política consiste em aumentar os gastos em momentos de baixo crescimento para compensar a retração do consumo e dos investimentos privados, e fazer o oposto quando a situação se inverte: reduzir gastos quando o país cresce. Fizeram apenas a primeira parte da política. É assim que se formam as bolhas. Isso o Brasil sempre soube fazer e, por isso, o país tem dois a três anos de alta do PIB seguidos de novas quedas. E é exatamente dessa síndrome que o país está precisando se livrar.
O Ministério da Fazenda deveria ser o órgão que avisa os outros ministérios a hora de conter os gastos. Pois foi ele mesmo que, com truques contábeis e declarações inábeis, convocou a turma da gastança para a farra de 2010. A Eletrobras foi retirada da conta do superávit primário e aí a meta caiu de 3,3% do PIB para 3,1%. A operação de capitalização da Petrobras transformou títulos de dívida em receita primária. E assim se fez um espetacular superávit primário em setembro. Apesar disso, o Ministério da Fazenda terá de descontar da conta o que foi investido no PAC para atingir o superávit primário. O resultado tem dependido cada vez mais de receitas extraordinárias, o que torna o desempenho mais frágil, já que é um dinheiro com o qual não se pode contar.
O ano de 2010 foi apenas o mais evidente de uma administração desastrosa das contas públicas no segundo mandato de Lula. Seja qual for a forma de se fazer a conta, o resultado é sempre o mesmo: o governo gasta muito, gasta mal e aumentou de forma espantosa as despesas correntes.
O economista Raul Velloso acha que se pode dividir o governo Lula, na área fiscal, em três fases. A primeira na “crise da transição”, quando o governo, influenciado fortemente pelo então ministro da Fazenda Antonio Palocci, respondeu acima das expectativas. Naquela época, os juros eram altos e as previsões de crescimento, baixas. A tendência era de dívida/PIB subindo. O governo “dobrou a aposta”, diz Raul, elevou o superávit primário e ainda enfrentou o desgaste da aprovação da reforma da Previdência.
A segunda fase, intermediária, vai até a crise de 2008, quando as bases dessa primeira fase são lentamente abandonadas. O governo foi beneficiado pelo crescimento mundial, pelo fluxo de capitais para o Brasil, pela reconquista da confiança na política econômica. Isso permitiu a redução forte dos juros, diminuindo as despesas financeiras. O PIB de anos anteriores foi recalculado e isso ajudou a reduzir a dívida/ PIB. O PIB ficou maior, e a dívida, relativamente menor. A reforma da Previdência nunca foi regulamentada. Além disso, o governo enviou ao Congresso um projeto de lei que estabelecia um teto para o gasto de pessoal da União: ele só poderia crescer o equivalente ao IPCA mais 1,5%. Subiria acima da inflação, mas de forma contida. Segundo Raul, esse projeto continua vagando no Congresso, jamais aprovado, jamais respeitado.
A partir da crise de 2008, o governo entrou na terceira fase: a da “licença para gastar”.
— Não só as administrações públicas, mas também o BNDES, passaram a gastar bem mais que antes. E pior, houve um forte crescimento do gasto corrente rígido que, uma vez posto, é difícil tirar de volta. Os superávits primários caíram e introduziu- se a contabilidade criativa, que retirou credibilidade dos indicadores fiscais — explicou Raul.
Dessa história, que começa virtuosa e termina errada, o pior momento aconteceu em 2010, quando tudo jogava a favor de um ajuste e houve o aumento ainda maior das despesas. De acordo com o economista, mesmo sem contar 2010, o gasto corrente aumentou 140,6% entre o fim de 2002 e o fim de 2009. Os gastos de pessoal cresceram 113,8%. A Receita não financeira líquida total da União cresceu 131,7% entre 2002 e 2009. Apesar disso, o governo teve déficit nominal todos os anos.
O projeto de Antonio Palocci era buscar o déficit zero num plano fiscal plurianual. A então ministra Dilma Rousseff considerou “rudimentar” essa que foi a melhor ideia que surgiu na área fiscal no governo Lula. Agora, só resta andar em busca do tempo perdido.
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