Uma ex-comunista na Presidência
MAÍLSON DA NOBREGA
Revista Veja - 27/12/2010
A Utopia comunista encantou muitos jovens, inclusive este escriba, entre os anos 1950 e 1960. Prometia a sociedade sem classes e a todos atender segundo suas necessidades. Na época, o comunismo da União Soviética parecia superar o capitalismo. Nikita Kruschev, o líder soviético, foi levado a serio quando em 1960 bateu o sapato na tribuna da ONU e depois anunciou que seu país suplantaria os Estados Unidos em 1980 o Sputnik, o primeiro satélite, fora lançado em 1957. Em 1961 o russo Yuri Gagarin tornou-se o primeiro a ir ao espaço, ampliando o otimismo comunista. Acreditava-se que os paises em desenvimento e até mesmo alguns desenvolvidos adotariam o socialismo soviético. Seria uma questão de tempo.
A coisa não era tão rósea assim. O governo soviético privilegiava a industria pesada, em detrimento da industria leve e da agricultura. Dizia que mais tarde o sacrifício seria recompensado por sólida base industrial e pelo acesso a bens de consumo. Como a promessa não se cumpria, sinais de insarisfação apareceram já em 1953, nos distúrbios de Berlim. Em 1956 foi a vez da Hungria e da Polônia. Todos foram reprimidos. Novas· promessas de mudança e melhoria não se concretizaram. O descontentamento aumentava a medida que a prosperidade se firmava nas sociedades capitalistas. No radio e na TV, os paises vizinhos da Europa Ocidental viam que ficavam para trás. Ate os cidadãos soviéticos, mais distantes, começavam a notar o fosso.
Os dois problemas estruturais do mundo comunista ficaram evidentes: a supercentralização e a ausência de incentivos, particularmente de recompensas pelo esforço individual. Inibiam-se a inovação e os ganhos de produtividade, que são centrais no processo de desenvolvimento.
O crescimento comunista vinha do impulso da industria pesada, que se esgotava. A União Soviética chegou a superar os Estados Unidos na produção de alto, mas isso resultava de ineficiências. Um trator soviético pesava oito vezes mais do que o americano. A agricultura se atrasava. A eletrônica virou de vez o jogo em favor do capitalismo. O transistor e o laser transformaram produtos de consumo, processos industriais, os transportes e as telecomunicações. O computador se tornou dominante. O comunismo perdeu a corrida tecnológica por causa das falhas sistêmicas do planejamento central.
A esquerda européia percebeu a realidade. Aceitou a economia de mercado e a democracia como valores fundamentais, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim. Entendeu que o capitalismo era também superior no respeito às liberdades individuais inerentes aos regimes democráticos. Na América Latina, o aggiornamento começou no Chile. Aos poucos, em distintas velocidades, se espraiou por outros paises. A madura esquerda chilena evitou o retorno da velha tradição intervencionista. O mesmo ocorreu no Uruguai. No discurso de posse, sem rodeios, Mujica prometeu uma política econômica ortodoxa. Institucionalmente, esses dois paises são os mais avançados da região.
No Brasil, o governo de FHC foi exemplo dessa mudança. Reverteu retrocessos estatistas da Constituição de 1988 e laçou as bases de um novo período de desenvolvimento. Lula manteve a política econ6mica, mas não continuou as mudanças nem evitou que em seu governo sobressaísse um vetusto anticapitalismo. o anticapitalismo, alias, e a marca de muitos que abandonaram a utopia do socialismo real soviético. Sua conversão foi parcial. Defendem vigorosamente a democracia, mas desconfiam da economia de mercado. Recentemente, a preferência pelo estatismo se nutriu de um equívoco, o de que a crise financeira teria devolvido o prestigio a ampla intervenção na economia.
Espera-se que a nova presidente, na linha de seu colega uruguaio, dispa-se dos últimos vestígios do anticapitalismo que professava. Isso não significaria abraçar o absoluto livre mercado, outra utopia, mas liderar o país para livrá-lo de conhecidas ineficiências do estado.
MAÍLSON DA NOBREGA e economista
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