Farol de xenon
Antonio Machado
CORREIO BRAZILIENSE - 11/12/10
Problemas pontuais desenham o ajuste da política econômica que vai influenciar os próximos anos
A inflação se distanciando da meta de 4,5%, com aumento anual de 5,63% até novembro, e o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) impelido pelo consumo de famílias mais que pelo investimento e com as importações correndo à frente da produção industrial desenham o ajuste da política econômica que vai influenciar os próximos anos.
Pelo sistema convencional dos últimos anos, tal situação conduz o Banco Central a subir a Selic, enquanto a Fazenda contingencia as liberações orçamentárias, com tais ações operadas com o propósito de reduzir a demanda agregada pelo encarecimento e encurtamento do crédito ao consumo (efeito do aumento dos juros básicos) e redução da liquidez alimentada pelo Estado (resultado do corte fiscal).
Tais providências são ajustadas à meta de inflação definida pelo governo para períodos anuais, atualmente de 4,5%, e ao prazo que for considerado adequado para esvaziar as pressões inflacionárias. Pressões intensas, por exemplo, são tratadas com aumentos maiores da Selic e do congelamento do gasto fiscal. Mais fracas dispensam o rigor extremo, e podem ser espaçadas ao longo do tempo.
Tal sistemática tem sido bem-sucedida, mas gerou sequelas. A taxa básica encarece o capital produtivo, onera a dívida pública - o que exige superavit primário do orçamento federal para servi-la -, atrai fundos externos de curto prazo, que vão contribuir para a valorização do real. Se fosse vez ou outra, não haveria com o que se preocupar. Praticada anos a fio, tornou-se um fim em si mesmo.
A operação com títulos públicos pelo mercado fez da definição da Selic um meio de vida, desviando as atenções, dinheiro grosso e os melhores cérebros para o circuito financeiro. E não só.
Especialmente no governo Lula, a política apurou que um BC zeloso com a estabilidade libera a licenciosidade fiscal, deixando-a com o papel de promotora do bem, já que os malvados que inflam a Selic vestem a carapuça de vilões e assim são tratados de modo geral.
No fim, tem-se a inflação no eixo, os pobres não percebem o peso dos juros, o empresariado graúdo escapa com o crédito subsidiado, o funcionalismo público é poupado com o juro fixo do consignado, e fica a impressão de que, se está tudo normal, não há o que mudar.
A economia do cinismo
Os gestores da política econômica também foram se enrolando nessa construção em serie de distorções. Não se sabe bem, por exemplo, a função relevante do superavit primário: se a original, que procura reduzir o estoque da dívida em relação ao PIB, ou como coadjuvante da Selic para segurar a demanda tal como o BC faz com a apreciação induzida do real. A economia regida pelo cinismo leva a isso.
O BC não arreda pé de cumprir a meta de inflação. O governo, como se o BC fosse um alienígena, veio fazendo o contrário de 2006 para cá: soltou o gasto fiscal com salários e contratação de pessoal, com transferências diretas de renda, com investimentos públicos e com estímulos ao crédito ao consumo - decisões que põem a demanda eventualmente em desalinho com a meta de inflação e espicaçam os deficits externos para além do que seria prudente aceitar.
Excesso de prioridades
Tais problemas não são simples de resolver, mas não o serão com a estabilidade ligada ao piloto automático da Selic, como fazem crer economistas vinculados ao mercado financeiro. Nem a taxa básica dá conta de convergir a inflação à meta sem que o BC a eleve a níveis politicamente inaceitáveis, como fez no passado recente, mas com a diferença de que então havia uma crise de solvência e hoje há uma dissintonia entre o crescimento que o governo Lula ambicionou e as restrições impostas pela institucionalidade da inflação estável.
O que aconteceu? Lula assumiu prioridades demais, sobretudo depois da crise global no fim de 2008, levando a política econômica a se embaralhar entre a estabilidade, o investimento em infraestrutura, as atenções às demandas do funcionalismo e os programas sociais.
Novo consenso à vista
A ser como a presidente eleita, Dilma Rousseff, e seus principais formuladores da área econômica - como o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do BNDES, Luciano Coutinho -, têm afirmado em manifestações cautelosas, 2011 será de preparação para um novo salto do crescimento, com menos crédito ao consumo e mais renda da expansão dos investimentos que do gasto público corrente.
As condições para o desenvolvimentismo sem meia boca estão dadas. E nem a inflação encorpada atual é um entrave. Há outro consenso à vista, apesar dos receios dos acomodados com o status quo.
Superando restrições
Com uma mistura de paciência, de modo a que os choques de preços se desfaçam com o controle mais rígido do gasto e do crédito, em vez de juros, e tempo, para que a demanda gerada pelo investimento ocupe o espaço a ser liberado pelas atuais alavancas do consumo, a economia poderá romper as restrições só superadas com o para-anda do crescimento. Ficou mais fácil com o aumento do emprego, já que tende a criar um quadro fiscal menos assediado por demanda social.
O "para" expressa a carência de infraestrutura e oferta doméstica aos impulsos do consumo. O "anda" é a vocação de uma economia que superou a adolescência do crescimento movido a inflação e a dívida externa. O setor privado se adequou, falta o Estado criar poupança fiscal para praticar política de desenvolvimento e ser solução.
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