Militar é militar, polícia é polícia
Alexandre Barros
O ESTADO DE SÃO PAULO - 11/12/10
Estamos à beira de uma ladeira descendente. Se tudo correr conforme anunciado, as Forças Armadas virarão polícia e ocuparão mais favelas no Rio. Declarações oficiais dão conta de que a ocupação será "por tempo indeterminado".
Entre 1922 e 1985 as Forças Armadas brasileiras fizeram política. A Escola Militar era na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, a poucos quilômetros dos Palácios do Catete e Guanabara. Volta e meia, os cadetes saíam da escola para "dar um golpe".
Mudaram-na para Realengo, bem mais longe. Não melhorou muito. De 1922 a 1985 os transportes progrediram e a chegada de Realengo e da Vila Militar aos centros de poder foi ficando mais rápida.
Nesse meio tempo, tropas brasileiras participaram da 2.ª Guerra Mundial (se estiver interessado em saber mais sobre o assunto, vale a pena ler As Duas Faces da Glória, do jornalista e cientista político William Waack). Voltaram da Itália, derrubaram Getúlio Vargas. De 1946 a 1964 vivemos uma sucessão de golpes e contragolpes abortados. Em 1964 os militares tomaram o poder e não o entregaram a civis. E lá ficaram até 1985.
Um dos segredos da longevidade do regime militar brasileiro foi o estabelecimento de regras claras e previsíveis de sucessão, desde que um militar sucedesse a outro militar. Oscilamos entre períodos de linha mais e menos dura, mas quase todos os grupos político-militares tiveram sua vez. O regime militar brasileiro saiu melhor na foto histórica graças a essa previsibilidade da sucessão entre as várias facções militares do que foi o caso na Argentina e no Chile, este com Pinochet e aquela com a sucessão de Juntas.
Poucos se lembram, mas nossa atual democracia, inaugurada em 1985, já está durando mais do que a que prevaleceu entre 1946 e 1964.
As sucessivas entradas dos militares na política eram um resquício do período aristocrático (principalmente europeu), em que não havia diferença entre guerreiros e policiais. Os mesmos aristocratas faziam guerras externas e garantiam o poder internamente. O término do ciclo das ditaduras militares do fim do século 20 pretendeu enterrar esse período e mandar os militares para os quartéis.
Isso criou uma crise de identidade para os militares. De repente ficaram sem função, porque perderam suas funções tradicionais, que ainda mesclavam policiais e guerreiros. A experiência não foi boa.
Militares são treinados para matar e policiais, para combater criminosos, de acordo com as leis.
"Vivemos numa democracia. Se os senhores mandarem, assumiremos o controle da ordem interna, mas é bom que fique claro que nossos soldados são treinados para matar, não para ler os direitos constitucionais de suspeitos", disse um general americano em depoimento ao Congresso. Os congressistas desistiram da solução militar interna. Continuaram a fazer guerras em outros países.
No Brasil a crise de identidade permaneceu e os militares sentiam-se desconfortáveis com isso. Para eles, parece uma humilhação, mas, na realidade, não é. A IBM passou por uma bruta crise de identidade na década de 1990. O que ela sabia fazer - computadores - e a maneira como se organizava para fazê-los e vendê-los ficou defasada. Quase foi à falência. Demitiu mais de 100 mil funcionários no mundo, reorganizou-se, redefiniu sua função e vai muito bem, obrigada. Suas ações valem agora na Bolsa de Nova York cerca de US$ 145.
Os militares brasileiros também enfrentam sua crise de identidade. Para superá-la foram redefinidas suas funções como forças pacificadoras em países em crises de paz ou de guerra. Elas são exercidas em territórios de terceiros países e por tempo limitado, até que a ordem se restabeleça.
A participação dos militares na recente "pacificação" da Vila Cruzeiro e das favelas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, abriu um precedente perigoso. As primeiras notícias eram de que a Marinha cedera alguns carros de combate blindados para transportar policiais na ocupação das favelas. Era só apoio logístico.
Mas, da mesma maneira que o amor próprio rapidamente se pode tornar impróprio, o Exército também entrou em cena. Os soldados desceram dos carros blindados e passaram a ocupar entradas, saídas e território, até que, no sábado 4 de dezembro, anunciaram o governador do Rio de Janeiro e o ministro da Defesa que as Forças Armadas (as que lá estão e outras que venham a ser mobilizadas) ocuparão as favelas já "pacificadas" e as que ainda virão a sê-lo "por tempo indeterminado".
Como gostava de dizer Castelo Branco, foram bulir com os granadeiros e chamá-los a fazer o que não era sua tarefa.
As Forças de Paz que ocupam territórios de terceiros países, mal ou bem, têm um controle civil e/ou de uma organização internacional. Se as Forças Armadas voltarem a se ocupar de ordem interna no Brasil, a possibilidade de que os vícios que caracterizam as chamadas "bandas podres" das polícias contaminem os militares são grandes. Depois que eles estiverem dentro das cidades (favelas ou não), não será fácil desalojá-los. Chamar os militares implica também adiar a tarefa prioritária de reformar e modernizar as forças policiais.
O curioso dessa história é que sumiu da discussão o tráfico de drogas, como se, por milagre, ele tivesse desaparecido só porque os militares entraram em cena. Mas a demanda por drogas está aí, não acabou. Alguém vai cuidar da oferta. Um risco é que os militares também entrem nisso.
Antes que o filme queime, mantenhamos polícias sendo polícias e militares sendo militares. Seria um retrocesso muito grande eliminar essa distinção, pelas consequências de médio prazo que já sabemos que não são boas. Só não sabemos quanto tempo demoram a ocorrer.
CIENTISTA POLÍTICO, É DIRETOR-GERENTE DA EARLY WARNING: ANÁLISE DE RISCO POLÍTICO (BRASÍLIA)
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