sexta-feira, dezembro 17, 2010

ALON FEUERWERKER

Mistificações 
ALON FEUERWERKER 
CORREIO BRAZILIENSE - 17/12/10

É razoável que a participação de Dilma Rousseff na luta armada contra a ditadura tenha sido objeto de atenção na campanha eleitoral, e é democrático que ela, como presidente eleita para governar o Brasil, sofra a iluminação dos holofotes sobre a biografia. 
Quem se candidata a dirigir o país tem certas regalias, mas abre mão de outras. Ou deveria abrir. 
Um subproduto indesejado, porém, é a luta política contaminar excessivamente a observação histórica. É inevitável, mas as taxas andam acima do recomendado pela razoabilidade. 
O que não é razoável? A insistência em caracterizar as ações da oposição armada de quatro décadas atrás como "terrorismo". 
Se terrorismo houve no Brasil naquelas épocas, foi esporádico e praticado durante a abertura dos anos 1970 e 1980, exatamente por quem se opunha à redemocratização. O Riocentro ficou como símbolo dos espasmos. 
O que a esquerda armada fez aqui foi guerrilha, urbana e rural. Pode-se definir guerrilha e terrorismo como mais convém. Mas se as palavras são distintas é por significarem coisas diferentes. 
Guerrilha é uma guerra com certas características, irregulares. Travada portanto entre contingentes militares. Terrorismo é o uso de violência maciça contra a população civil, ainda que com propósitos políticos. 
Se a mitologia da direita alimenta o espectro do "terrorismo" supostamente praticado por organizações políticas da esquerda, esta última adquiriu a mania de responder à mistificação com outra: de que a luta armada foi o único recurso restante a quem desejava combater então a ditadura. 
Seria, então, ou a guerrilha ou a passividade. 
Bonito, mas completamente furado. A luta armada foi integralmente derrotada no início dos anos 1970. Seu último suspiro foi o Araguaia. Mesmo assim, 10 anos depois a ditadura caiu, culminando uma longa agonia, iniciada na eleição de 1974. 
Se o único meio de luta possível era o militar, e se as atividades militares da oposição haviam cessado há mais de uma década, quem e o que derrubaram o regime? Seria um mistério e tanto. 
A escapatória mítica da "ausência de opção" exibe esse buraco lógico. 
A luta armada naquela época não foi resultado da ausência de alternativas, mas uma opção política. 
Parte da esquerda considerou que o golpe de 1964 contra João Goulart havia comprovado o esgotamento da chamada "democracia burguesa", e portanto da possibilidade de transformações progressistas por meios pacíficos. Era descrito na época como o "colapso do populismo". 
Juntaram a isso o entusiasmo com as revoluções chinesa e cubana e arremataram a receita. 
Deu errado, como se sabe. O que deu certo foi outro caminho, de participação nos espaços políticos remanescentes para a oposição, de engajamento firme no processo eleitoral, de reorganização da resistência social, a começar do movimento estudantil. A luta pela redemocratização como é bem conhecida dos historiadores. 
Deu tão certo que relativamente pouco tempo depois o regime foi obrigado a revogar o discricionário Ato Institucional número 5, abrindo ainda mais espaço para a ação política pacífica. Não foi coincidência o movimento operário do ABC ter emergido depois da revogação do AI-5. E não antes. 
As grandes mobilizações que desfecharam os golpes finais no autoritarismo foram principalmente consequência dos espaços arrancados pela resistência democrática, não causa. 
Outra mistificação é dizer que quem enfrentou o regime de armas na mão fê-lo por ter mais coragem. Coragem é atributo difícil de medir, ou de comparar, mas enfrentar uma ditadura desarmado costuma ser ato de enorme coragem. 

Coragem Por falar em coragem, oportuna e corajosa a manifestação do ministro da Defesa, reafirmando a Anistia brasileira. 
A Lei de Anistia de 1979 foi uma grande conquista da luta democrática do povo brasileiro, e fechou de maneira inteligente e generosa toda uma etapa complicada da História do Brasil. Merece ser defendida. 
O país tem o direito a conhecer sua memória. As famílias dos combatentes caídos na luta contra o regime militar têm total direito de saber o que se passou com seus entes queridos. 
A Anistia não é impedimento para nenhuma das duas coisas. É apenas, como sempre foi na nossa trajetória nacional, um instrumento para impedir que o passado seja oportunisticamente transformado em obstáculo à construção do futuro. 

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