Imprensa em foco
MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 26/10/10
Os Estados Unidos viveram em 1971 e vivem agora o mesmo dilema: qual é o limite da imprensa? Ela deve ser censurada quando divulga documentos militares? No caso dos "Papéis do Pentágono", sobre a guerra do Vietnã, o impasse foi decidido na Justiça. Agora, novo debate começa com os documentos do Wikileaks. Na América Latina, tentam pôr a imprensa a reboque dos governos
A divulgação de 400 mil documentos secretos da guerra do Iraque e Afeganistão, neste fim de semana, pela ONG especializada em capturar documentos, a Wikileaks, ajuda a revelar o que tentaram esconder: 15 mil mortes não registradas; excessos das empresas terceirizadas na guerra; uma intervenção mais séria do que se sabia do Irã no conflito; e a aceitação da tortura e das violações dos direitos humanos.
O Pentágono, o Departamento de Estado, a Casa Branca condenaram a divulgação porque ela colocaria em risco os soldados americanos e seus informantes locais. A mesma alegação de 1971, quando se tentou na Justiça suspender a publicação dos documentos vazados por Daniel Ellsberg para o "New York Times" revelando os crimes do governo americano no Vietnã. O final da história foi um marco do jornalismo e do Direito: a Suprema Corte decidiu por 6 a 3 que a imprensa tinha o direito de informar.
De novo há muita polêmica em torno da ação da Wikileaks de divulgar o que os governos envolvidos com a guerra tentaram esconder.
O primeiro-ministro inglês, David Cameron, ficou em silêncio, o vice-primeiro-ministro, Nick Clegg, já avisou que quer saber até que ponto a Inglaterra foi conivente com os crimes. Ou seja, num momento em que a coalizão que governa a Inglaterra passa pelo seu teste de fogo, com os cortes no Orçamento, os dois partidos no governo divergem sobre as revelações da imprensa.
Entre o vazamento de Ellsberg e o do Wikileaks ocorreu a mais ampla revolução da comunicação de que se tem notícia na História. Pense no que evoluiu a tecnologia de informação em 40 anos. É muito mais difícil hoje criar barreiras à livre circulação da informação.
Até nos regimes autoritários está ficando difícil.
Neste contexto, em que os limites da transparência são forçados pelas armas da tecnologia, no Brasil reaparece a ideia de censurar a mídia. Desta vez, a censura tem o carinhoso nome de "controle social", mas o efeito é o mesmo. Houve nos últimos anos uma captura do movimento social pelo governo ao custo de recursos públicos e aparelhamento.
Essa não é a primeira vez que o governo tenta criar conselhos e agências que supervisionem e monitorem o trabalho dos jornalistas. O que mais irrita é a dissimulação.
Jabuti não sobe em árvore.
Se está lá, alguém pôs. Como foi mesmo que apareceu no primeiro programa da candidata Dilma Rousseff a menção explícita a esse "controle social"? Depois isso foi tirado e a candidata passou a declamar a resposta de que prefere "o barulho da imprensa livre, ainda que injusta, ao silêncio das ditaduras." Bela frase.
Só falta explicar o jabuti na árvore. Até porque ele aparece lá com uma certa frequência: nos projetos Ancinav e do Conselho Federal de Jornalistas, na Conferência Nacional de Comunicação, no Programa Nacional dos Direitos Humanos-3, na primeira versão do programa da candidata, no projeto de conselho de comunicação do Ceará e nas palavras do presidente.
Os governantes não devem fazer tão pouco da nossa inteligência. É óbvio que está em marcha uma tentativa de estabelecer, através de instâncias burocráticas e corporativas controladas pelo PT e seus aliados, uma nova forma de censura à imprensa, agora edulcorada com a ideia de que a sociedade é que quer.
De novo, não passarão.
Como não passaram as tentativas do começo do governo Lula porque a sociedade brasileira é mais vigorosa do que pensam. Mas os riscos não podem ser subestimados.
Na América Latina, o governo da Venezuela fechou uma rede de televisão, 32 rádios, duas TVs regionais, ameaça e prende jornalistas, instiga agressões físicas a empresas e profissionais e tem ampliado de forma extravagante a imprensa paga direta ou indiretamente pelo dinheiro público. Na Argentina, o casal que governa o país mandou sobre o grupo Clarín fiscais tributários, pressionou anunciantes privados, cancelou licença para serviços de provedor de internet, tenta estatizar a empresa de papel de imprensa e já falou em estatizar a própria imprensa.
Na ditadura de Cuba surgem cada vez mais furos no projeto de uma imprensa monolítica. Blogs, twitters furam o bloqueio. No Irã, as cenas de assassinato da estudante Neda correram mundo depois de gravadas por um celular e enviadas pelo twitter. A China, no alto do seu poder, tenta com todos os recursos tecnológicos evitar que saia qualquer notícia inconveniente como a do prêmio Nobel para Liu Xiaobo, mas ainda assim um blog chinês que postou apenas duas aspas com o texto em branco bateu recordes de visitas e apoios. Se os jornalistas contornaram proibições em outros momentos e regimes, mais facilmente conseguirão agora. Por isso o melhor é que os neocensores sejam sensatos, atualizemse, e abandonem seus velhos projetos.
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