Eu nasci dentro de uma câmera
ARNALDO JABOR
O GLOBO - 26/10/10
Eu era cineasta e virei jornalista. Fiz nove filmes e parei há 17 anos. Continuo jornalista, que adoro como profissão, mas, de três anos para cá, resolvi filmar de novo. Alguns artigos que escrevi sobre meu passado juvenil foram a base do argumento: meu pai, meu avô, minha mãe, as primeiras buscas de amor e sexo, o Rio da bossa nova que nascia, da copa de 58, o Rio que na época era um paraíso de liberdade, até a chegada do golpe de 64.
Um ano escrevendo, um ano atrás do dinheiro com meu sócio Francisco Ramalho Jr., um ano e meio para filmar, montar e agora exibir.
Fiquei besta como tudo mudou. O cinema no Brasil está um show tecnológico. Antes, as condições eram terríveis, as equipes, despreparadas, a fome rondava o espetáculo e variávamos entre dois sentimentos básicos: ansiedade e frustração - "Será que vai sair o dinheiro?" ou "Os exibidores acham que o filme é um abacaxi".
Em 1943, meu pai foi aos Estados Unidos e comprou uma máquina de filmar, de 8mm, Kodak. Guardo essa câmera até hoje, fico olhando o buraco da objetiva e penso que ali, naquela lente, passou minha vida inteira. Meu pai fez um verdadeiro longa-metragem de nossa família, entre 43 e 62. Minhas primeiras imagens são de fraldas e as últimas mostram-me com 20 anos, recebendo a espada de aspirante a oficial da reserva, perfilado no quartel do Exército - mais de três horas de minha infância profunda em trêmulas imagens riscadas.
Este filme, "A Suprema Felicidade", é uma volta ao passado, onde devolvo minha vida a meus pais e ao Rio que me viu crescer. Essa pequena câmera aparece no início do filme, nas mãos de Mariana Lima. Entrei nessa câmera e virei cineasta.
Quando comecei a filmar, em 65, as câmeras eram pobres, nossos filmes, preto e branco, nosso som, precário e, no entanto, a fome de mostrar o olho do boi morto, o mandacaru pobre, as mãos brutas dos camponeses, a cara boçal da classe média faziam-nos desprezar até o aperfeiçoamento técnico, numa espécie de mímica do cotidiano proletário. Racionalizávamos nossa miséria em teoria, numa espécie de arte povera: a precariedade seria mais profunda que um "reacionário" progresso audiovisual.
Estava surgindo o Cinema Novo, que, aliás, nasceu num botequim.
Isso mesmo. Lá no bar do laboratório Líder, em Botafogo, foram sonhadas dezenas de filmes. Hoje, o bar já virou uma "acrílica" lanchonete. Mas, desse tempo mágico, ficaram as lembranças: as moscas no bico dos açucareiros, os chopes, os sanduíches de pernil, os ovos cozidos cor-de-rosa, a linguiça frita, o cafezinho em pé. E era ali, no meio de insignificantes objetos brasileiros, era ali que traçávamos os planos para conquistar o mundo. Conspirávamos contra o campo e contracampo, contra os travellings desnecessários, contra o happy end, contra a fórmula narrativa do cinema norte-americano e acreditávamos que éramos parte da salvação política do país - nossa câmera era um fuzil que, em vez de mandar balas, recolhia imagens do país para "libertar" os espectadores.
E nisso havia até uma ingênua verdade, pois o cinema moderno perdeu a magia crítica de antes, porque, quanto mais se aperfeiçoam as maneiras de devassar a "realidade", mais distante ela fica.
Hoje, são infinitas as imagens que invadem nossas mentes e olhos. O videoclip, a metralhadora da publicidade, a velocidade do ritmo criaram um excesso de informações que se anulam. Tanta é a exposição da realidade do mundo que não vemos nada. Quanto mais se fazem descobertas, mais fundo é o túnel do mistério; a máquina do mundo, quanto mais aberta, mais fica vazia. O desejo dos produtores (de Hollywood, principalmente) é justamente apagar o drama humano dentro de nossas cabeças. A ação na tela é incessante, de modo a nos paralisar na vida; o conflito é permanente, de modo a impedir o espectador de ver seus conflitos internos.
O Brasil está tonto, perdido entre tecnologias novas cercadas de miséria e estupidez por todos os lados. Temos uma imensa e riquíssima quantidade de formas técnicas e quase nenhum conteúdo. Antes, tínhamos fins, mas não tínhamos meios. Hoje, temos todos os meios, sem um fim claro. A tecnologia nos enfiou uma lógica produtiva de fábricas, fábricas vivas. Somos carros, somos celulares, somos circuitos sem pausa. Assistimos às chacinas diárias entre chips e websites.
Por isso, tentei fazer um filme que seja visto sem a pressa angustiada do rococó eletrônico que nos assola. Já que a vida está tão fragmentada do lado de fora dos cinemas, tenho a esperança de que uma vida mais clara apareça na sala escura.
Minha "suprema felicidade" é que o filme parece que tocou em emoções que ficaram impalpáveis nos últimos anos, pois quem muda não são apenas as produções, mas a cabeça dos espectadores. Ficamos desacostumados de cenas puras, sem manipulações e efeitos, que subtraem do público a liberdade de observar as ações das personagens; esquecemos que as ações humanas vão muito além das corridas vertiginosas de carros ou de metralhas arrebentando corpos; esquecemos de uma dramaturgia que exponha ações complexas do drama humano.
Meu Deus, que saudade do cinema clássico! Que saudade do sonho, da utopia fílmica dos anos 50 e 60, alimentada pelo "Cahiers du Cinema" e pelos círculos de fumaça dos "Gitanes" sem filtro. Hoje, o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, está nos hotéis, na ponta dos dedos dos insones, está rodando bolsinha nas ruas.
Tenho saudades da sala escura, do cinema segredo, do cinema tesouro, o cinema dos pobres tímidos, o cinema como uma ilusão que nos levava ao êxtase ("ia-se ao cinema como ao bordel - em busca de ilusões", conforme Paulo Emílio Salles Gomes), o cinema como realidade alternativa, que analisávamos noite adentro nos bares. Ahh... como era bom esperar um filme do Fellini, a cada ano... Quando vem o novo Antonioni, o novo Bergman?
Mal me comparando a esses grandes homens, estreia no Brasil, no dia 29, um "novo Jabor".
Não me percam... num cinema perto de vocês.
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