200 voos depois
Ruy Castro
FOLHA DE SÃO PAULO - 06/09/10
Tinha de acontecer. Fui parado na esteira de raios X do Aeroporto Santos Dumont por estar 'portando' na bagagem de mão um objeto perfurocortante. Ordens da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
Quando a encarregada da esteira perguntou sobre o canivete que eu estaria 'portando', embatuquei. Não sou de canivetes, nunca quis sequer ter um daqueles suíços, com 88 lâminas, uma delas para os cabelinhos do nariz. Mas fiz um rápido exercício intelectual e concluí que se tratava de meu cortador de unhas, o popular 'trim', comprado num camelô do Catete, em 1991, juntamente a um pente Flamengo e meia dúzia de pilhas do gato.
Expliquei à madame que o objeto dentro da 'nécessaire' era um singelo trim, mas ela exigiu ver. E, no que viu, concluiu que, com sua lima serrilhada para lixar as unhas, eu poderia render o comandante e obrigá-lo a jogar o avião da ponte aérea contra a estátua do Borba Gato, em São Paulo. Opções: eu teria de voltar ao balcão e despachar o trim, ou descartá-lo numa caixa para tal fim. Por preguiça de descer ao saguão, optei pelo descarte – não sem antes me despedir do instrumento que, por quase 20 anos, me cortara fielmente as unhas, inclusive as da mão direita. E embarquei.
Mal sabe a Anac que, na mesma bolsa, passou incólume um exemplar de 'Madame Bovary', que, em 1857, virou a cabeça das mulheres malcasadas e levou seu autor, Flaubert, ao banco dos réus. Na própria 'nécessaire', havia um pequeno frasco com seiva de alfazema pós-barba, potencialmente mais perigosa que o trim – o aroma é considerado sedutor e hipnotizante.
Desde que a Anac impôs essas normas de segurança, na sequência dos atentados do 11 de Setembro em Nova York, o trim já entrara comigo, impunemente, em quase 200 voos. Era fatal que, um dia, fosse descoberto, capturado e tivesse seu perigo neutralizado.
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