Família Muricy
MÔNICA BERGAMO
FOLHA DE SÃO PAULO - 29/08/10
O técnico diz que sofreu ao dizer não para a seleção, afirma que ninguém divide o insucesso e que dá risadas há 30 anos com a mesma mulher
Nos intervalos de um treino do Fluminense, o técnico Muricy Ramalho checa os recados da família no celular. "Eles ligam direto", diz, sobre a mulher, Roseli, e os filhos Fabíola, 28, Muricy Júnior, 20, e Fábio, 15. Acostumado a discutir em casa todas as decisões da carreira, teve que dar satisfação para eles quando recusou, em julho, o convite para treinar a seleção. Na sala de ginástica do clube, no Rio, onde um retrato de Telê Santana, seu mentor, ocupa toda uma parede, Muricy conversou com o repórter Diógenes Campanha entre goles de chá de camomila com adoçante.
O EXEMPLO DO PAI
Meu pai era muito rígido, um cara que trabalhava no mercado de Pinheiros, acordava às 2h. Filho de português, né? Pô, ele me levava à 1h30 pro Mercadão e me fazia dormir na caixa! Quer castigo maior que isso? Tinha que comer tomate, as verduras que tivessem lá, porque tinha feito coisa errada. Um cara que não tinha dinheiro, mas tinha dignidade. E a criança observa. Vai num almoço, vai numa reunião, ela fica olhando o pai e a mãe. Então, pra mim, o meu pai era um espelho. Um cara que trabalhava pra caramba. Formou um irmão meu médico, quando não tinha a menor possibilidade de formar.
OS FILHOS
Quando o Internacional me contratou, em 2002, tava um desastre, terrível. Eu cheguei pra fazer um tipo de uma recuperação. E todo ano o São Paulo me ligava pra eu ir pra lá. Eu dizia: "Vocês vão me desculpar, sei que é irrecusável, mas não posso. Eu tô formando um novo time, não posso largar no meio. Seria uma puta injustiça". Aí meus filhos, são-paulinos, ligavam loucos: "Porra, cê tá maluco, cara? Não vai vir pro nosso time, pra nossa casa?" Eu moro a 500 m do Morumbi. E eu falava: "Quando você assina, ou não assina, mas dá sua palavra, tem que cumprir. Vocês têm que fazer igual". Quero que eles respeitem as coisas, respeitem as pessoas.
O NÃO PARA A SELEÇÃO
Em princípio, os meus filhos reagiram como sempre: "Mas ficou louco, né?". [Ri] Eu sofri aí uns dois, três dias. Não é fácil abrir mão de um sonho. Tem uma hora em que você fica sozinho e aí pensa: "Será que o que você fez foi certo?". É o caminho que eu escolhi e isso me conforta.
SACRIFÍCIOS DA BOLA
Eu casei com a minha mulher no México [quando jogava naquele país, em 1980]. Pô, a família ficou brava, porque ninguém participou. Segunda coisa, eu conheci minha filha com três meses de idade. Meu irmão era ginecologista e a minha mulher tinha muita confiança nele. No final da gravidez, ela veio pro Brasil. E eu conheci minha filha por fotografia. Porra, minha filha chegou nas cartas! Aí eu tava na semifinal do Campeonato Mexicano e, na hora em que tava jogando, meu pai morreu. Não cheguei pro enterro. Já era técnico, fui pro Náutico. Minha mãe teve um AVC. Cheguei e ela já tava na UTI. Também morreu. O futebol te dá muitas coisas, mas tira demais.
PROFESSOR POY
Pô, o Poy [José Poy, ex-goleiro do São Paulo e treinador de Muricy quando ele jogou no clube] era chato pra caramba. Queria que você comprasse um terreno ou uma casa antes de ter carro. E tinha que mostrar pra ele a escritura. O que os caras faziam? Eles deixavam o carro lá em cima, numa rua escondida, e desciam para o Morumbi a pé. E é longe, hein, meu? Aí um dia, olha só o que é o azar: o [jogador] Serginho Chulapa comprou um Fuscão. E andava com os braços de fora, óculos escuros, chapéu pra trás. Tava na cidade, deu farol vermelho, e quem parou do lado dele? O Poy. Ele gritou: "Que que é isso? Amanhã, vai trazer as escrituras, senão você vai vender a porcaria desse carro!".
Quando o clube foi fazer a renovação do meu contrato, meu pai disse: "Vamos pegar parte da luva [adiantamento] e dar entrada numa casa pra você". Só que o São Paulo, naquele tempo, não é como hoje, que tem dinheiro. Eles me deram um cheque pré-datado pra dois meses. Peguei o cheque e pensei: "Alguém vai ter que me emprestar esse dinheiro. Pô, o Poy vive me enchendo o saco pra comprar casa". Não deu outra. Ele não falava nem bom-dia. Era grande, argentino, bravo. Bati na portinha dele: "O que que foi, moleque?". "Ó, seu Zé, o senhor sempre fala que não é pra comprar carro, roupa. Então, surgiu uma oportunidade. Tem uma casa aí..." Fui preparando o bote. "Mas tem um probleminha, eu tô com o cheque aqui, é do São Paulo, ó, mas é pré-datado pra dois meses. E vou perder o negócio. Então pensei no senhor." Ele me olhou com uma cara, mas não tinha saída, né? Comprei a casa. Isso aí faz 30 anos. E a casa tá lá, é minha ainda.
TELÊ
Os caras falam que eu sou invocado. É porque vocês não viram o Telê [Santana, ex-técnico de quem Muricy foi auxiliar no São Paulo]. Foi um cara que cumpria suas coisas. Palavra dele era palavra dele. Não tinha por que assinar as coisas. Eu não queria ser igual, porque ele era muito chato. Mas queria ter o comportamento dele com os contratos, a seriedade com os jogadores, com os clubes.
RELAÇÃO COM JOGADORES
Eu me imponho, né? Sou muito tranquilo, mas se você fizer sacanagem comigo, você tá morto. Vou te pegar, pisar no seu pé mesmo. Não quero saber se eu vou ter problema, se eu não vou ter problema. Com jogador é a mesma coisa. Esse negócio de paizão, família Muricy, essas coisas, eu não suporto esse negócio. Mas se eu puder melhorar ele como pessoa, melhoro. Converso muito com eles sobre guardar dinheiro, porque a vida é muito curta e o futebol é uma ilusão.
UM NOVO TEMPO
Jogador, no meu tempo, não era muito aceito do lado social. Hoje em dia os caras de boate, dos lugares importantes, fazem questão de ter o jogador lá. No meu tempo, porra, a gente não passava nem perto da porta. Casar com jogador era brincadeira. Hoje todo mundo quer. Ou basta ter filho, né? Mudou demais.
O AMOR
A minha mulher não se casou com jogador. Casou com o namorado de infância. A minha casa era aqui, tinha uma no meio e aqui era a dela. Aquelas coisas de amor de vida, né? Estou há 31 anos casado com a mesma mulher. Dizem que é difícil, mas pra mim é uma maravilha.
No nosso sítio em Ibiúna [a 70 km de SP], tem um quiosque pequenininho e a gente fica embaixo dele, conversando. Eu tô há 30 anos conversando com a mesma mulher e, porra, acho cada dia uma novidade. Antes ela tava meio, assim, receosa de vir para o Rio. Agora ela quer vir toda hora. Eu vou no calçadão andar com ela, paro em algum lugar pra tomar uma cerveja. A gente se diverte, dá risada. Quando você dá risada com a mulher, é porque tá bom o negócio.
VINGANÇA
Quando o time tá numa fase ruim, acaba um jogo, aí você vai pro seu quartinho para ficar sozinho, esfriar a cabeça, tomar banho, antes de ir pra [entrevista] coletiva. E já houve dirigentes do próprio clube dizendo: "Tem que sair, tem que mandar embora!", ligando pra treinador. E não fez uma vez, fez várias e várias vezes. Mas eles deram azar, porque eu atropelei eles com a minha atitude, cara.
MORUMBI
Acho uma maravilha. Tem que ter Copa lá! É um absurdo o Morumbi ficar fora. Eu conheço cada pedacinho. Se você andar por dentro dele, é brincadeira a organização, o que o Juvenal [Juvêncio, presidente do São Paulo] faz. O Morumbi tá um brinco. Outro dia o [canal] ESPN mostrou fotos da África. Não dava pra ver a linha do gol por causa das placas, um monte de defeito, cara! E querem achar ponto cego no Morumbi.
PENDURAR AS CHUTEIRAS
Ah, claro que eu penso! Eu me desgasto demais com o futebol. Porque eu preciso ganhar. O único combustível que me mantém bem, que me dá felicidade, é a vitória. E aí o estresse vai lá pra cima. O treinador tem momentos alegres, mas, nas horas tristes, ele fica muito solitário. No insucesso, ninguém divide, é sempre o cara.
PÉ NO CHÃO
Eu não me entusiasmo com as coisas na vida. Estou muito bem nesse momento, mas e amanhã? Eu não sei, meu, amanhã os caras me dão as costas. Futebol não é confiável, a verdade é essa.
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