A amizade e seus desafios
Miguel Reale Júnior
O Estado de S.Paulo - 07/08/10
Dizia Cícero que a amizade é antes de tudo confiança. Para que a relação entre duas pessoas se aprofunde o pressuposto é ver com simpatia o outro no seu modo de ser. Do contrário, há uma distância impeditiva de vir a prosperar o afeto. Essa distância não existe numa relação de igualdade, na qual cada um se torna solícito em face do outro, que se transforma não apenas na pessoa a ser conhecida, mas compreendida.
Essa solicitude, que consiste na disponibilidade de compreender e de se fazer compreendido, abre espaço para confidências. Cada qual deve sentir-se não apenas livre para se confidenciar, mas disposto a ouvir confidências do outro, numa relação dialogal. E ao fazerem confidências, com o desprendimento para compreender, acabam por compreender a si mesmos. Consagra-se, então, a confiança em clima de cumplicidade, presidido por um sentimento mútuo de lealdade.
Todos nós temos alguma satisfação no que se realiza, uma ponta de orgulho do que se é. Mas, recorrendo novamente a Cícero, cabe lembrar o seu alerta: "Os resultados da lisonja são maiores frente àquele que se lisonjeia a si próprio" - pois quanto mais alguém se ufana de si próprio, mais distante resta da realidade, por vezes negativa, e se faz suscetível ao elogio fácil.
Assim, um amigo deve enaltecer o outro, mas apenas quando este efetivamente o merece, pois o elogio gratuito só engana e é pura hipocrisia. Como consequência da confiança, da lealdade, surge como ingrediente da amizade a obrigação de aconselhar. Mas este dever de dar conselho compreende até mesmo dizer algo que venha a desagradar? Se não cabe cativar amigo lisonjeando, deve-se, no entanto, camuflar a verdade, por exemplo, deixando de denunciar ao amigo a situação ridícula que esteja a viver? Cumpre sonegar a verdade e não arriscar a quebrar a amizade em vista do potencial desgosto da revelação? Em suma, é melhor dourar a pílula, omitindo-se, para não perder o amigo?
A meu ver, a amizade exige que se abra mão até mesmo dela para dizer a verdade àquele que muitas vezes não a pretende ouvir ou não compreenderá, na situação em que se encontra, o ato de desprendimento e de sinceridade do amigo conselheiro.
Na mesma linha de ponderação, vale lembrar a expressão latina "sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade", critério a ser ponderado na hipótese de caber ou não a crítica pública a amigo que claudica no exercício de cargo público, em conduta nociva ao interesse geral. O que fazer: omitir-se ou agir em favor do interesse do país? Deve-se manipular a verdade para proteger o amigo das críticas justas ou cumpre ser mais amigo da verdade? Na realidade, é-se amigo da verdade e também de Platão ao se falar a verdade, pois talvez o amigo reconheça o erro e, ao mesmo tempo, não se deixa de atender ao interesse público.
Um desafio, que põe à prova a confiança e a fidelidade que caracterizam a amizade, surge no momento em que o amigo cai em desgraça, por uma infelicidade financeira ou moral. Nesse instante, faz-se um teste da amizade, pois o falso amigo se afasta para não se contaminar ou para não se revelar próximo de quem é, por exemplo, acusado da prática de fato socialmente reprovável. A amizade impõe sacrifícios. Assim, desde que a ação não atinja o amigo diretamente ou o seu mínimo ético, deve ele ser solidário, sem que tal signifique aprovação do desvio praticado.
Cumpre, também, indagar: a amizade como solidariedade justifica que se pratiquem atos ilegais para favorecer o amigo? Até onde se pode sair da linha correta para não prejudicar ou para auxiliar um amigo? A amizade deve compreender a cumplicidade para ajuda indevida? Há o dever de ser condescendente a ponto de dar proteção a um amigo para que consiga restar impune diante dos atos ilegais praticados?
Em juízo o amigo não pode silenciar sobre o que sabe, mas fora dele não está obrigado a denunciar. A omissão é uma forma da mentira, mas é justificável guardar silêncio sobre o que se sabe, não dando notícia de fato ilícito à polícia, tocado pelo sentimento de afeição.
Se dois amigos desejam a mesma mulher ou buscam as mesmas honras, e só um pode ser contentado pelo destino, como preservar a amizade? Por vezes, a vida coloca frente a frente amigos na concorrência pelo poder econômico ou político, em confronto apenas desfeito com a renúncia de um ao objetivo pretendido.
Na disputa pela mesma mulher, os gêmeos Esaú e Jacó, no romance de Machado de Assis, apaixonam-se por Flora. Não havia lugar para os dois e só a desistência de um apaziguaria a guerra a que o destino pôs fim pela morte de Flora.
Mas, além da renúncia, há outro caminho possível: a disputa deve ser franca, para impedir o surgimento do ódio. Esta solução não é fácil. Mais fácil, infelizmente, é a transformação da amizade em ódio, em ressentimento. Por isso, é rara a amizade entre homens públicos, pois a conquista e o próprio exercício do poder levam à simulação, ao disfarce. Quando se está para conquistar ou a exercer o poder, existe o medo de perdê-lo em face, especialmente, dos amigos. E não pode haver medo na amizade, pois medo é o inverso da confiança.
A amizade tem, portanto, diversas forças contrapostas: medo, desconfiança e, a mais frontal, a inveja, pois inveja não é querer ter o que o outro tem, mas querer que o outro não tenha o que tem, na lição de Melanie Klein.
São vários os desafios da amizade. Quem tem amigos sabe o quanto vale superar desafios para solidificar a amizade. Recordo Camus: "Só quem ama a si próprio pode amar ao próximo" - desde que se acautele contra a lisonja. Em suma, só ao amar a si mesmo se é capaz da coragem de ser amigo e de respeitar os limites éticos que a experiência da amizade carrega, para em nome dela não poupar críticas e em face da honestidade não dar indevida proteção a um amigo.
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
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