Amigos
Manoel Carlos
VEJA - RJ
Meu pai conhecia muita gente, mas tinha poucos amigos. Eu segui os seus passos. Não deliberadamente, como caso pensado, mas a vida foi rolando e essa economia de amizade foi ficando evidente. Peneirando, peneirando, sobram poucos. Algumas pessoas identificam a diferença. Dizem, por exemplo, que fulano é seu colega (de trabalho). Mas o mais comum é o fugaz conhecido virar amigo, até mesmo íntimo. O amigo do peito. Aquele que supostamente está ali para rir e chorar com você. Na saúde e na doença, como nos votos matrimoniais e que se pretendem indissolúveis. Lembro-me dos versos do Drummond:
“O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode”.
Com o tempo, os poucos vão ficando mais poucos, como se diz no interior de São Paulo. Nos cadernos de endereços, os nomes dos que morreram vão superando os dos que continuam vivos. E quase sempre nos admiramos:
— Meu Deus, na letra R não tenho mais ninguém. E na S só um, mais velho do que eu.
Contam-se nos dedos das mãos. Muitas vezes, de uma única mão. E de repente, quando nos damos conta, percebemos que uma boa ou má notícia que queremos dar aos amigos não tem mais do que meia dúzia de nomes. Nem sempre é de lamentar. Afinal, a amizade tem códigos restritos, quase todos ocultos. Como portas trancadas. Quem tem a chave entra. Quem não tem dorme no sereno.
Tive um professor exemplar, Angelo Magrini, já algumas vezes aqui citado, que dizia:
— Existem temas que não se esgotam nunca. Lembro de uma namoradinha que tive quando era rapaz, que um dia, diante de uma modesta e provinciana fonte luminosa, me disse placidamente: “Olho para essa fonte, as luzes azuis e vermelhas refletidas na água, e não sei dizer se ela é bonita ou feia”. E desde esse dia, mesmo diante da Fontana di Trevi, as fontes, luminosas ou não, me deixam em dúvida, desafiando meu entendimento do que é bonito ou feio. Assim também a amizade, que é mais complexa que o amor. E assim também, soberana sobre todas as outras, a Morte. A Dama Branca e indesejada, como a chamava Manuel Bandeira.
No dia 9 de junho, precisamente há dois meses, recebi do meu amigo Cyro del Nero um texto belíssimo, a que ele nominou de Testamento, e que começa com estas palavras:
“Morrer é deixar. É deixar um verso esclarecedor ouvido e esquecido. É deixar as celestes esferas da música e nunca mais ouvir Bach. É deixá-lo. Agora o deixamos. É deixar o que ele apontou — onde não havia ainda expressa — a provável dimensão do ser humano. Deixamos e nos vamos. Morrer é deixar”.
Abrindo o texto, Cyro sossegava os amigos a quem se dirigia com estas palavras: “Não estou morrendo. A não ser um pouquinho a cada dia. Mas a previsão é cada dia mais lúcida e calma. Abraço do Cyro”.
O final desse admirável texto diz:
“Morrer é deixar. Deixar o nosso gesto afetivo nunca identificado. Deixar o que não foi compreendido em nossa voluntária exegese. Deixar a vaga lembrança de nós, vapor que se desfaz mais rapidamente do que o calor que o criou. Mas que duração se poderia pedir ao vapor? Morrer é perder”.
No dia 1o de agosto Cyro nos deixou.
Nós o perdemos.
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