Justiça fiscal e superávit primário |
Clóvis Panzarini
O ESTADO DE SÃO PAULO - 30/08/10
Imposto é o preço que a sociedade paga para ser organizada. Sem ele não haveria governo, ente abstrato que tem o poder de regrar uma sociedade política, exercer sua autoridade, distribuir justiça e segurança, promover, enfim, o bem-estar social. Ou seja, a alternativa ao imposto é o caos, a pré-civilização, a barbárie... Mas poucos cidadãos-contribuintes notam que são eles que arcam com o custo dessa organização, com cada centavo gasto pelo governo, da construção da autoestrada ao pagamento do Bolsa-Família, passando pelo caviar das refeições palacianas. Esse desconhecimento incentiva o governante a estufar o peito e proclamar, impune, barbaridades como "eu fiz", "eu construí", "eu distribuí", "eu concedi", quando na verdade é regiamente remunerado para administrar - bem ou mal - a aplicação dos impostos.
Grande parte do povo, especialmente os desvalidos, tem o governante como um semideus, um ser desprendido que tira do próprio bolso os recursos que financiam as generosidades governamentais. É fato que o bom governante, que administra adequadamente e com justiça os recursos arrecadados, promove aumento no bem-estar social, ainda que tais recursos sejam amealhados por meio de tentáculos tributários, que no caso brasileiro são essencialmente injustos. Há antigo debate acadêmico sobre a forma mais eficaz de promover a justiça fiscal: se por meio de impostos ou do gasto público. Um sistema tributário justo há de ser progressivo, gravando mais pesadamente os mais ricos. No caso do Brasil, o sistema tributário é excessivamente regressivo e grava proporcionalmente mais o orçamento dos cidadãos de renda mais baixa.
Isso ocorre porque na composição da carga tributária predominam impostos indiretos, cuja base de incidência é o consumo, e têm natureza regressiva, pois tributam igualmente os desiguais: o imposto que incide sobre um prato de feijão, seja ele consumido por assalariado ou magnata, é sempre o mesmo. Nesse sentido, Estudo da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo mostra que as famílias com renda mensal de até 2 salários mínimos (SM)gastam com tributos 48,8% da renda, enquanto as que têm renda mensal acima de 30 SM suportam só 26,3% de carga tributária.
Mas a busca da justiça fiscal pelo lado do imposto não depende de reforma tributária, como muitos demagogicamente apregoam, mas da calibragem das alíquotas dos tributos diretos e indiretos. Uma singela redução das alíquotas do PIS/Cofins sobre alimentos e concomitante aumento do Imposto de Renda sobre os ganhos de capital, por exemplo, reduziriam a regressividade do sistema, mas teriam efeitos colaterais indesejáveis. Ocorre que o agravamento na tributação sobre bases de incidência com grande mobilidade horizontal, como é o capital, ensejaria arbitragem dos agentes econômicos e poderia provocar fuga de investimentos do Brasil para outros países.
De outro lado, o consumo é uma base de incidência com pouca mobilidade e apresenta maior facilidade de coleta - na fonte de produção ou na cadeia de circulação -, o que explica a preferência injusta do governo para compor seu Orçamento. Da mesma forma, a redução da carga tributária, que hoje equivale a 35% do PIB, também não depende de reforma tributária, mas de calibragem para baixo de algumas (ou todas) alíquotas dos impostos. Destarte, não é de esperar que a busca da justiça fiscal possa ser feita com eficácia pela via tributária.
Também do lado da despesa pública não há muito que esperar em face do engessamento da estrutura de custeio do setor público do País, que deixa pouca margem para investimentos ou melhoria na qualidade dos serviços, o que ensejaria mais justiça fiscal. A despesa com salário do funcionalismo, blindado por direitos constitucionais, o déficit crônico da Previdência social e os juros da dívida pública comprometem parte substancial do orçamento público. Só os juros nominais da dívida pública, próxima de R$ 1,5 trilhão, exigem do governo, ou melhor, de nós, contribuintes, o equivalente a 5,40% do PIB ou 15,5% da carga tributária.
E o que é pior, não há recursos fiscais para pagar todo esse juro: no fluxo de 12 meses até julho, o "superávit primário" - exótico conceito que mede a diferença entre a arrecadação total e gastos não financeiros do governo - equivaleu a só 2,03% do PIB, menos da metade das necessidades para pagar os juros (os tais 5,40% do PIB) e bem abaixo da meta de 3,3% estabelecida para este ano. A diferença, o déficit nominal de 3,36% do PIB, foi coberta com dívidas novas, que nós, nossos filhos e netos, haveremos de honrar. Verdadeira bola de neve!
Mas o governo alardeia - e a mídia repercute - que faz enorme esforço fiscal e gera "superávit primário" para pagar os juros da dívida. Esse "superávit primário" teria de ser 162% maior (cerca de R$ 115 bilhões) para poder honrar todo o juro da dívida e zerar o déficit verdadeiro, o nominal. Enquanto isso, nosso rico e esbanjador governo anuncia faraônicos trens-bala e bilionárias festas esportivas nos próximos anos. E há quem ainda sonhe com redução da carga tributária e maior justiça fiscal.
*CLÓVIS PANZARINI É ECONOMISTA, SÓCIO-DIRETOR DA CP CONSULTORES ASSOCIADOS LTDA. (WWW.CPCONSULTORES.COM.BR), FOI COORDENADOR TRIBUTÁRIO DA SECRETARIA DA FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO.
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