Saudades zero
BARBARA GANCIA
FOLHA DE SÃO PAULO - 11/06/10
Lembrarei do passeio por Johannesburgo como um dos mais desagradáveis da minha existência
AO SOBREVOAR Johannesburgo, o primeiro susto. Pela janelinha do avião da South African Airways, tenho a impressão de que estou em cima de Genebra.
Só que esta versão, tão comportada e próspera quanto a original e com áreas verdes igualmente cuidadas, é salpicada por piscinas.
Nem mesmo em Los Angeles parece haver tantas. Serão tão numerosos assim os executivos de carreira da De Beers?
Desembarcamos no aeroporto Jan Smuts e tomamos a via expressa Jan Smuts. Se não me engano, a rua em que nosso hotel está localizado também se chama Jan Smuts.
O primeiro passeio pelas ruas de Johannesburgo entrará para a história como um dos mais desagradáveis da minha vida. Além de nos perdermos e de um avestruz irritadiço ter tentado separar na marra minha cabeça do meu tronco (quem mandou a burralda aqui esquecer de fechar o vidro do carro?), acabamos topando com situações inimagináveis, um verdadeiro pesadelo.
Vi com estes olhos, que ema nenhuma há de comer de aperitivo, bancos de praça marcados com tinta branca com a expressão: "whites only" (só para brancos); vi a faixa de ultrapassagem nas estradas trazer a mesma frase, que nunca apagarei da minha mente; observei vários incidentes na rua em que brancos repreendiam negros apenas porque seus olhares se cruzavam e testemunhei uma senhora passar um sabão totalmente desproporcional numa menina de não mais de 14 anos que esbarrou nela com uma sacola. Não entendi o que a mulher disse, ela falava em africâner, só sei que a menina ouviu tudo de cabeça baixa sem revidar.
Isto foi nos idos de 1973. Estava a caminho do Quênia com meu pai e minha irmã e nós aproveitamos para conhecer Johannesburgo.
De lá para cá, o herói local, Jan Smuts, continuou a ser um ilustre desconhecido para o resto do mundo. Quem ocupou seu lugar foi um herói de verdade, aquele que proporcionará o momento mais especial desta Copa se, sua saúde permitindo, ele conseguir dar as caras no estádio durante o torneio.
O odioso apartheid, regime que me pareceu grotesco naquele breve contato da adolescência, terminou em 1994 porque Mandela acreditou que seria possível fazer as coisas de uma maneira diferente do "business as usual", da mesmice de sempre.
A De Beers, que simbolizava a riqueza da África do Sul e a arrogância do apartheid, já não existe mais como monopólio do comércio de diamantes que, por sua vez, perderam a importância como mercado. Mas, a despeito das mudanças, a África do Sul, como podemos observar pelos relatos que chegam, está longe de ser uma belezura.
Passados 16 anos do fim do apartheid, o ressentimento ainda é grande. Não há mulatos circulando pelas ruas, prova de que a miscigenação permanece sendo um projeto para a próxima geração e que a reconciliação proposta por Mandela só pode ser encarada como um processo para lá de longo e doloroso.
Ao mesmo tempo, de tão caricato, o atual presidente do país, o general Jacob Zuma, parece um personagem saído das páginas de uma história em quadrinhos de Tintim.
Para quem está preocupado em tecer comparações entre a Copa da África do Sul e a Copa no Brasil, lembre-se de que nem mesmo um luminar como Severino Cavalcanti diz que a Aids pode ser evitada com rituais de bruxaria, é polígamo reconhecido ou foi acusado de estupro. Boa Copa!
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