Fumante 2010 %u2013 Mais econômico e menos poluente
Marcelo Andrade Féres
ESTADO DE MINAS - 10/05/10
O título acima imprime ao fumante mineiro feições de objeto, assim como um anúncio publicitário abordaria um novo modelo automotivo. Seria cômico se não fosse, no entanto, a realidade experimentada por sujeitos, outrora livres e respeitados em sua autodeterminação e sua dignidade como seres humanos, e hoje coisificados pela inconfidente Lei Anti-Fumo (Lei. 18.552/2009), cuja vigência se iniciou há alguns dias, revolucionando a Lei 12.903/1998, que já definia medidas de combate ao tabagismo em Minas Gerais.
Do mesmo modo, e aí sem problemas, que as normas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) incidente sobre os produtos fumígeros, de regime seletivo, qualificam esses bens como indesejados e supérfluos, atribuindo-lhes alíquotas elevadas, as alterações promovidas pela nova lei tornam o tabagista um cidadão de segunda categoria. Intervêm na esfera privada e indevassável do indivíduo, subtraindo seu livre-arbítrio e rotulando-o como uma coisa marginalizada e execrável no âmbito do convívio social.
Nesse contexto repressivo, supõe-se a proximidade da escassez da bupropiona no território mineiro. Sim, da nicotina à bupropiona, substância presente nos atuais medicamentos usados na luta contra a dependência do tabaco.
Com efeito, a lei em análise proíbe fumar em recintos fechados públicos e privados, destinados ao uso permanente e simultâneo por diversas pessoas, excluindo as tabacarias e, por óbvio, os locais abertos e ao ar livre. Nos recintos fechados, porém, ela permite o fumo em “áreas isoladas por barreira física, que tenham arejamento suficiente ou sejam equipadas com aparelhos que garantam a exaustão do ar para o ambiente externo”, isso é, os conhecidos fumódromos, verdadeiros espaços de confinamento dos fumantes.
Afora a Lei Federal 9.294/1996, que restringe a publicidade de produtos fumígeros e regula a prática do tabagismo em espaços públicos, a insurreição radical quanto à temática, todavia, não se iniciou nas Minas Gerais dessa vez. Outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, notabilizam-se por recentes disciplinas legais de semelhantes conteúdo e rigor.
Aponte-se, ilustrativamente, a Lei 13.541/2009, do estado de São Paulo, questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.249, proposta pela Confederação Nacional do Turismo (CNTur) perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse processo pendente de julgamento, o então advogado-geral da União e hoje Ministro do STF, José Antonio Dias Toffoli, manifestou-se pela inconstitucionalidade formal daquela lei, entendendo, em síntese, que o estado de São Paulo extrapolou os limites de sua competência concorrente para legislar sobre saúde, por contrariar os condicionamentos ao tabagismo em locais públicos estabelecidos pela Lei Federal 9.294/1996.
A par de similares e discutíveis inconstitucionalidades formais da sistemática mineira, seu maior pecado reside no desrespeito à liberdade e à igualdade de todos perante a lei, asseguradas pelo caput do artigo 5º da Constituição.
No caso, liberdade e igualdade são indissociáveis. Liberdade de conviver e igualdade para conviver, como fumante, em espaços públicos fechados. A própria lei mineira considera locais de uso coletivo aqueles em que há pessoas diversas e, como se sabe, diversas não apenas significa algumas ou muitas, mas também se traduz por variadas e distintas. No espaço público, de fato, coexistem e convivem diversas e distintas pessoas, com diversos e distintos modos e projetos de vidas, e a igualdade somente se concretiza pela aceitação harmônica dessas diferenças.
A liberdade ora discriminada e reprimida pela lei é a de fumar e, portanto, a de ser fumante, em ambientes públicos fechados. Mas quais serão as próximas liberdades a serem exterminadas pelo Estado? Lembre-se, por exemplo, da abominável lei francesa que proibiu o uso ostensivo de sinais religiosos, como o véu islâmico, os crucifixos cristãos ou a “kippa” judaica nas escolas públicas. Tudo que é diferente aos sentidos ou à ideologia de alguém pode gerar incômodos e, em havendo esses, caberia ao Estado suprimi-los ou às pessoas aceitarem o pretenso diferente?
A propósito, enfatizando a compreensão do fumante como verdadeiro autômato, a lei mineira exonera-o de qualquer responsabilidade pelo ato de fumar. Fixa multa a ser paga pelo titular do estabelecimento privado em que ocorrer a infração, valendo-se de padrão frequentemente empregado no direito civil para a fixação da responsabilidade por danos causados por coisas, animais ou incapazes.
Além disso, a lei, supostamente vocacionada à questão da saúde, desinteressa-se da sanidade do tabagista. A única consequência direta para o fato de ele fumar em local proibido é a multa cominada em desfavor de terceiro. Não é associada a tal conduta qualquer medida imediata preventiva ou educativa a cargo dos órgãos estatais. O indivíduo é flagrado fumando, o estabelecimento é multado e pronto.
Não se defende aqui o tabaco nem seu consumo, mas sim o respeito às liberdades. O fumo faz mal à saúde. O Ministério da Saúde adverte e todos sabem. Contudo, a opção por não fumar deve ser exercida pelo indivíduo voluntariamente, como expressão de sua auto-determinação e não por imposição legal.
Cada sacrifício de liberdade individual revela um dano irreparável à liberdade humana de convivência. Nenhum fumante é uma ilha isolada e, dessa maneira, na famosa imagem poética de John Donne, não perguntes hoje, em Minas Gerais, for whom the bell tolls, pois os sinos dobram por ti, fumante ou não.
Marcelo Andrade Féres - Procurador federal, professor adjunto de direito comercial da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
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