Divórcio
MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 22/05/10
A gravidade do que aconteceu durante a tramitação, na Câmara e no Senado, do projeto de lei Ficha Limpa, com a tentativa permanente de fugir ao espírito da proposta através de emendas de parlamentares dos mais diversos partidos, não está apenas na consequência dos subterfúgios dos políticos, se é que o TSE deixará que a nova lei não tenha a efetividade que a cidadania aguarda.A questão central é a diferença radical entre o que os eleitores querem e o que os políticos estão dispostos a oferecer. Um divórcio entre os representados e seus representantes, a democracia representativa sendo deturpada pelo corporativismo.
Esse projeto de lei nasceu de uma iniciativa popular, figura criada na Constituinte de 1988, e reuniu inicialmente 1,7 milhão de assinaturas.
Chegou assim ao Congresso como uma reivindicação claramente popular, fruto do trabalho conjunto de nada menos que 44 entidades que compõem o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE).
Mas essa chegada triunfal de uma reivindicação da cidadania ao Congresso não impressionou as “excelências”, que estavam dispostas a guardar a iniciativa popular no fundo de uma gaveta fechada a sete chaves.
Se não houvesse uma mobilização constante dos movimentos sociais envolvidos, certamente este teria sido o destino desse projeto de lei.
Mais de dois milhões de assinaturas foram adicionadas através da internet, e os deputados passaram a ser pressionados por mensagens em seus correios eletrônicos ou pelos telefones da Câmara, a tal ponto que ficou claro que não seria tolerada uma tentativa de “engavetar” o projeto.
Mesmo assim, houve diversos movimentos dentro da Câmara, durante o processo de análise do projeto, para desvirtuar seu sentido, e, para que fosse aprovado, foi preciso negociar abrandamentos diversos, sendo o mais importante o que jogou para a condenação em segunda instância a inelegibilidade, circunscrevendo o impedimento da candidatura a uns poucos parlamentares.
Ao chegar ao Senado, o projeto foi recebido com as boas-vindas do líder do governo, Romero Jucá, que deixou claro que as prioridades do governo não são as mesmas da sociedade.
A reação foi tão grande que o governo teve que recuar.
A manobra corporativa culminou com a tentativa de alterar o espírito da lei na base da mudança do tempo verbal, que vai fazer com que o Tribunal Superior Eleitoral se pronuncie sobre a abrangência do que foi aprovado.
É a “Casa do povo” se rebelando contra o que o povo quer. Uma vez, o deputado Ibsen Pinheiro, que presidia a Câmara, disse que “o que o povo quer, a Câmara acaba querendo também”, referindo-se ao processo de impeachment de Collor.
Com o Ficha Limpa, o parto está sendo mais difícil, o que pode indicar um distanciamento maior dos parlamentares de seus eleitores, o que é um péssimo sinal para nossa democracia representativa.As palavrasRecebi da escritora Ana Maria Machado um texto em que ela, na qualidade de “cidadã e eleitora, um ser político o tempo todo”, mas utilizando as ferramentas de sua múltipla condição de “intimidade com as palavras e a língua”, como escritora e exprofessora de português, esclarece a confusão dos tempos verbais da lei Ficha Limpa, aprovada pelo Senado com alterações de redação, que, temem alguns, podem mudar o espírito da legislação, adiando seus efeitos.
Com o texto de Ana Maria, o debate fica, pelo menos, mais inteligente: “Os que forem juristas podem ter suas interpretações.
E até mesmo chamálas de gramaticais. Nem por isso o estarão fazendo porque virão a ser juristas, mas porque o são.
“Os que forem políticos podem ver um significado diferente na lei segundo a necessidade de aplicá-la para os que forem aliados ou os que forem adversários. Mas não o fazem porque virão a ser políticos. Pelo contrário, justamente porque o são.
“Se numa reunião do Congresso, alguém tentar organizar a distribuição de assentos e pedir que os que forem deputados se sentem ao fundo do recinto e os que forem senadores se dirijam às primeiras filas, nenhum parlamentar vai achar que a recomendação se refere a uma eleição futura e que precisam esperar primeiro ser eleitos para só depois saber em que categoria de os que forem se enquadram.
“Da mesma forma, instados a buscar seus assentos nesse caso hipotético, os que forem juízes sabem perfeitamente que não precisam aguardar nomeações futuras. Já o são.
“Os que forem leitores — de Montesquieu, por exemplo — sabem buscar o espírito das leis por trás da letra das mesmas.
“A confusão não é apenas gramatical e de tempo verbal.
É filosófica, entre ser e vir a ser.
“Na famosa frase que aprendemos na escola (creio que de Osório), a conclamação era: ‘Quem for brasileiro siga-me’. Uma maneira de dizer, no singular: “Os que forem brasileiros sigam-me”. A urgência era evidente. Não se fazia necessário esperar processos de naturalização ou novos nascimentos.
“Os adiamentos podem até funcionar por mais algum tempo. Mas a extraordinária mobilização popular pressionando pelo fim dos fichassujas mostra que a ficha do eleitor brasileiro está caindo. E em matéria de manobras para ganhar tempo e perpetuar a falta de ética na política, as que forem mais sutis serão sempre as mais repelentes. Não dá para mentir eternamente e renegar sempre o que se é.
“A tal história de ser impossível enganar todos o tempo todo”.
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