A Grécia foi aqui
Antonio Machado
CORREIO BRAZILIENSE - 23/05/10
Como o Brasil de ontem, a Grécia descerá ao inferno pelo que deve. A dúvida é se e como voltará
As crises, como impressões digitais, são diferentes entre pessoas e países. Igual a todos é o sofrimento que elas provocam e o senso de humilhação que as acompanham. É como se faltasse chão para pisar.
Tais emoções evocadas no curso da tragédia da Grécia incomodam os europeus, assim como pouco antes a descoberta pelos americanos da falibilidade dos EUA e a sua dependência da China devem ter mexido com os brios da maior potência econômica e militar do planeta.
Surgida das entranhas do mercado de hipotecas dos EUA, a grande crise, que colapsou o crédito no mundo e hoje solapa a solvência das nações, não é só um evento urdido pela especulação financeira, conforme a desculpa clássica de governantes atônitos. Nem se deve apenas às travessuras do mercado desregulado. Antes fosse.
O que pode ser diagnosticado é mais fácil de curar. A banca zoou? Controle sobre os banqueiros. O crédito sumiu? O mercado parou? É só chamar o Estado, como se fez no Brasil em contraponto à aversão ao risco da banca nacional. Se tudo quebrou ou parece insolvente, a receita é a mesma: mais Estado na economia. A esquerda adorou.
Aqui e ali, até escreveram o epitáfio do capitalismo, que seria um zumbi, a se crer nos profetas do caos, tantas vezes foi dado como morto e tantas vezes se ergueu tal qual Lázaro ao chamado Divino.
É possível que a recessão breve no país, parte devida às ações do governo para reanimar o consumo, tenha deixado marcas profundas na percepção do presidente Lula e de Dilma Rousseff sobre a economia.
A crise chegou como uma revelação em muitas partes do mundo. Nos EUA, ela mostrou o fim de linha do processo de endividamento tipo rosca sem fim iniciado no final da década de 1960. Na Europa, ela põe em causa o futuro do modelo de Estado de bem-estar — o remanso do desemprego e das aposentadorias regiamente remuneradas, assim como de serviços de saúde e educação impecáveis e gratuitos.
Para reflexões e temores desse quilate terem emergido, já dá para suspeitar de que essa crise é diferente. Mas para eles, os ricos. Não para nós, as ex-colônias, depois Terceiro Mundo. Hoje é o quê?
Eles olham para a Grécia e enxergam os subdesenvolvidos da década de 1980 arqueados pelo crescimento sem poupança e movido a dívida, pelos dois choques do petróleo, pelo choque dos juros dos EUA — e temem a dor da terapia que nos recomendaram. E a decadência.
O Club Med formado por Grécia, Portugal, Espanha e Itália é como a América Latina entre as décadas de 1980 e 1990 — também exaurida por deficit, dívida, Estado balofo, empresariado sem fé, políticos anões, sociedade exausta. E o FMI no cangote a serviço da banca.
Penitência é a mesma
Onde vastas partes da Europa do euro se assemelham com a América Latina do passado recente? Nas dívidas, no inchaço do aparelho de Estado e na incapacidade de a produção doméstica solver o que dela exigem os credores. Os países latinos que foram à bancarrota com alguma base industrial florescente, mesmo que de matérias-primas e bens agrícolas, ajustaram-se melhor ao tratamento prescrito.
Ele se parece com o que a União Europeia e FMI impuseram à Grécia como condição à ajuda de 110 bilhões de euros para refinanciar as dívidas do país até 2012. Brasil e Chile seguiram a receita e superaram a crise. A Argentina continua em coma. O resto não fazia diferença.
Ou faz ou sai do euro
A compreensão do significado da ajuda à Grécia é fundamental para a sanidade dos mercados. Com ela, a Grécia rola sua dívida sem ter de ir ao mercado. A cada vencimento, o Banco Central Europeu e o FMI recebem os papéis do Tesouro grego e acrescentam uma nova dívida.
Não há, com tal esquema, como a Grécia entrar em moratória. Se for, será por decisão unilateral do governo do primeiro-ministro George Papandreou, não por pressão externa. O corte de gastos e o aumento de impostos exigidos, porém, são excessivos. Uma recessão longa já está projetada. O Congresso grego aprovou o plano. Não se sabe se o governo poderá executá-lo. A população em fúria foi às ruas para lutar pelo seu bem-estar. Vai perdê-lo de qualquer jeito. A Grécia não tem economia para bancar sua dívida nem se virar fora do euro.
Líderes da nova ordem
Aguardam-se ações assemelhadas, mas em menor valor, que permitam a Portugal, com dívidas impagáveis, e Espanha, com deficits que os investidores temem financiar, sair dos mercados enquanto a poeira da crise grega não assenta. E depois? Só há o caminho de encolher o custo do Estado, deflacionar salários e armar um forte programa de renovação industrial para a volta da fortuna. Foi o que China, Índia, Brasil e Chile fizeram. Hoje, lideram a nova ordem global.
A síndrome da cigarra
Virou chavão dizer que o mundo mudou pela crise, o que é só parte do que acontece. A ruína de Wall Street foi o sinal vermelho para a opulência sem produção e o crescimento sem poupança — dois males mitigados na China pelo seu capitalismo de Estado regado a mercado e mal-entendidos no Brasil pelos doutos da economia e da política.
Ocioso é brigar pelo que vem primeiro: investimento ou poupança. Tanto faz, contanto que a produção cresça com estabilidade, o que requer que prevaleça sobre o consumo, sobretudo de governos. Esse é um debate em aberto no Brasil. Tarda fechá-lo. Dá-se como certo o início de outro ciclo de expansão no mundo puxado pela inovação. O risco é ficarmos para trás, entretidos pelo canto da cigarra.
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