Marchando na chuva
FOLHA DE SÃO PAULO - 19/03/10
RIO DE JANEIRO - Um telefonema importante atrasou minha ida para a Candelária, onde se daria a concentração para a passeata de protesto contra o esbulho dos royalties do petróleo, armado contra o Rio e o Espírito Santo pela infame emenda Ibsen. Quando cheguei, o cortejo já saíra pela avenida Rio Branco, rumo à Cinelândia. Melhor assim. Fui atrás e pude reviver o dia 26 de junho de 1968, quando estava ali, fazendo o mesmo percurso, na Passeata dos Cem Mil, contra a ditadura militar.
Pelo aglomerado de gente em alguns quarteirões e o relativo conforto para a marcha em outros, o número de aderentes era parecido. Apenas a composição humana variou mais. Em 1968, Nelson Rodrigues disse que não vira, entre os 100 mil, "nenhum negro, nenhum desdentado, nenhum torcedor do Flamengo", insinuando que tinha sido uma passeata das elites.
Bem, na de anteontem, não saí abrindo bocas para conferir o número de dentes per capita, mas havia cariocas de todas as cores e muitos flamengos com bandeiras. Sim, havia grupos sindicais, delegações municipais e lindas estudantes da rede pública, com suas minissaias plissadas e o rosto pintado de azul e branco, cores do Rio. Mas, em meio à massa, reconheci também o meu dentista, um ex-porteiro do meu prédio, o pipoqueiro da rua e até a Xuxa. Gente de várias origens, idades e extrações sociais.
Ibsen Pinheiro foi chamado de anão para baixo nas palavras de ordem, numa referência a seu passado de "anão do Orçamento". De esquina em esquina, celebrava-se o enterro do anão. Melhor será celebrar o enterro da emenda, que periga levar dois Estados à bancarrota, quebrar o princípio federativo e jogar o Brasil contra si mesmo.
De repente, a chuva caiu firme sobre o Rio, mas a marcha seguiu impávida. Um dos carros de som tocava, gostosamente, "Chove Chuva".
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