O enigma de Mantega
O ESTADO DE SÃO PAULO - 05/03/10
Sempre propenso ao esquecimento e à mistificação, o País pode acabar acreditando na história de que foi a crise econômica internacional que abriu os olhos do governo para a importância de reforçar a intervenção do Estado na economia. Na verdade, a crise foi apenas o pretexto. Abriu espaço para que o governo se desinibisse de vez e passasse a defender de forma mais desabrida ideias que sempre lhe foram caras. E que nunca deixaram de estar profundamente arraigadas na visão de mundo da cúpula dirigente do PT.
Em benefício da ministra Dilma Rousseff, o que pode e deve ser dito é que ela jamais se preocupou em esconder o jogo. Nem nos primórdios do primeiro mandato do presidente Lula, quando boa parte do ministério fazia das tripas coração para manter as aparências e não botar a perder o esforço de mudança de discurso econômico, que vinha sendo comandado com competência pelo ministro Antonio Palocci.
É preciso lembrar que, em meados de 2003, a ministra Dilma Rousseff, então responsável pela Pasta de Minas e Energia, anunciou uma proposta de reforma do setor elétrico que simplesmente não fazia sentido. Era um amontoado de visões preconceituosas e "pontos inegociáveis" que não levava em conta princípios econômicos absolutamente elementares. Com o País mais uma vez convertido em dispendioso navio-escola, foi preciso bem mais de um ano para que a ministra se familiarizasse com a realidade do setor e, afinal, cedesse aos argumentos dos especialistas da área, concordando em abrir mão dos pontos mais indefensáveis da proposta que tinha apresentado.
Com os remendos que tiveram de ser feitos, a reforma que afinal se fez ficou muito aquém do que teria sido possível se, desde o início, tivesse sido pautada por visão menos enviesada dos problemas do setor. Diante de uma ampla gama de arranjos possíveis, que iam de pouca a muita presença do Estado, o governo deixou de lado soluções mais parcimoniosas no uso de recursos públicos e optou por um modelo do setor elétrico que reserva ao Estado um papel central. Um papel que nos últimos anos tem ganho importância cada vez maior, à medida que as deficiências do novo modelo vêm sendo evidenciadas.
A resposta do governo às muitas dificuldades que vêm sendo enfrentadas tem sido quase sempre a mesma: carrear mais recursos públicos e paraestatais para o setor, seja aumentando a parcela dos novos investimentos financiada pelo BNDES, seja tornando mais generosas as condições de financiamento concedidas, seja forçando os fundos de pensão de empresas estatais a canalizar mais recursos para o setor, seja capitalizando a Eletrobrás e o próprio BNDES com recursos do Tesouro.
É difícil entender a lógica de um modelo que, no atual quadro fiscal brasileiro, sobrecarrega de tal forma o setor público com a arregimentação dos recursos requeridos para a expansão do setor elétrico. Ainda não há quem tenha conseguido decifrar a inesquecível explicação dada pelo ministro Mantega, em entrevista concedida ao Financial Times quando assumiu a Fazenda, em 2006: como o governo não conta com recursos para investir, a solução é recorrer ao investimento privado financiado com recursos do governo.
É interessante notar que, no novo ambiente que se criou no setor elétrico, a seleção natural logo se estabeleceu. Curvemo-nos todos a Darwin. Como seria previsível, o setor elétrico vem sendo rapidamente dominado pelas empresas mais aptas a lidar com os riscos e as possibilidades de negócios que envolvem relações íntimas com o governo: as empreiteiras.
O pior é que a ideia de que tudo se resolve com mais Estado vai sendo estendida com entusiasmo a outros setores. Há poucos dias o presidente Lula fez defesa candente do "Estado como grande indutor das coisas que devem acontecer". No mês passado já havia proposto ao setor privado uma regra simples para determinar em que áreas o Estado deveria entrar: "Se vocês não forem, eu vou." Aos mais velhos e com boa memória, a regra soa como reedição um tanto extemporânea da empoeirada "doutrina dos espaços vazios", brandida durante o regime militar para racionalizar a intervenção estatal em "setores estratégicos". É o nacional-desenvolvimentismo geiselista redivivo. Agora em embalagem de esquerda.
*Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
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