sexta-feira, março 05, 2010

GLAUCO ARBIX


A verdadeira muralha chinesa


Valor Econômico - 05/03/2010
 
Um poderoso firewall oficial bloqueia ou tira do ar inúmeros sites, portais e redes
Nos últimos anos, poucos eventos sacudiram tanto a China quanto a internet. Seu número de internautas já é maior do que os 230 milhões de usuários americanos (North America Internet Stats, 2010). Um público de jovens, com menos de 30 anos e que declaram ter na internet sua melhor fonte de informação.
Todos eles, porém, encontram dificuldades para superar um gigantesco problema: a censura. Um poderoso firewall oficial é a verdadeira muralha da China moderna. Quantos sites são censurados? Portais? Quantas redes? Ninguém sabe. Qual informação é censurável? Que tipo de conhecimento? Ou entretenimento? Talvez alguns poucos dirigentes do partido pudessem responder, ainda que fosse improvável que o fizessem publicamente.
A segregação digital, porém, começa a ser sacudida por caminhos inesperados. Diante da possível interrupção dos serviços do Google no país, a conceituada revista Nature realizou sondagem na comunidade científica chinesa e colheu resultados de primeira grandeza: a censura e eventual fechamento do Google farão muito mal à ciência do país. Segundo os dados divulgados pela agência Reuters (24/02/2010), mais de 70% dos cientistas chineses utilizam o Google como ferramenta de busca de dados, informações, artigos científicos e literatura acadêmica em geral. Dos cientistas entrevistados, 84% afirmaram que suas pesquisas perderiam substantivamente em qualidade se fossem privados do uso do Google; 78% afirmaram que sua colaboração internacional seria profundamente afetada.
O problema de fundo, que preocupa as autoridades chinesas, é que a existência do Google levou a uma alteração de hábitos de pesquisa, interferindo no modo de explorar, testar e difundir informação necessária para a geração de conhecimento. Longe de um gesto de censura de curto alcance (se é que isso é possível), a interrupção do Google provocaria reações de longa duração, com impacto sensível na eficiência da pesquisa científica.
Para um país disposto a disputar a hegemonia mundial, onde a pesquisa científica e tecnológica é a menina dos olhos das autoridades, as novidades vindas da comunidade científica não poderiam ser piores.
É certo que as relações entre democracia e economia nunca foram fáceis, como o crescimento mundial desta década insiste em mostrar. Comparada aos recordes de PIB e desempenho de vários países africanos e do Oriente Médio, a democracia apresentou indicadores tímidos, quando não regressivos, em meio à exuberância do crescimento econômico dos anos 2000/2007. Se tomarmos os Bric, o primeiro destaque cabe ao partido comunista chinês que praticamente triplicou o PIB do país nesse período, deixando um lastro de poeira para democracias na Índia e no Brasil.
Segundo os economistas do Goldman Sachs - que inventaram o selo Bric - essas disparidades aumentarão nas próximas décadas: enquanto a participação chinesa no PIB mundial saltará de 4% para 15%, o G-7 (grupo que reúne os países mais avançados, EUA, Alemanha, Japão, Inglaterra, França, Itália e Canadá) cairá do alto dos seus 60% para 20%. Observados isoladamente, alguns países como Angola, Moçambique, Nigéria, Egito, Paquistão, Vietnã e Irã, para citar apenas alguns, crescerão muito rapidamente, apesar da sua, digamos, pequena indisposição em relação à democracia. Diante dessas previsões, alguns analistas latino-americanos chegaram a manifestar saudades dos anos 80, quando, na década perdida, a democracia floresceu por quase todo o continente.
A famosa tese do "decouple", o descolamento das economias emergentes das avançadas, parece ter se desdobrado em outra versão, agora mais embebida de política. Pelo menos nos dias de hoje, o desempenho econômico parece ter se divorciado da democracia, pois são muitos os países que crescem aceleradamente apesar de seu forte viés antidemocrático.
Não é lei nem regra geral, apenas uma constatação. Por isso mesmo, espera-se que essas relações perigosas não sejam tomadas como exemplos a serem seguidos, pela simples razão que os parâmetros oferecidos pela economia, são poucos (e, muitas vezes, rasos) para a compreensão da democracia como fenômeno social. A política, cultura e a história são, com certeza, mais adequadas para esse fim. Principalmente porque reintroduzem no debate a dimensão do tempo, que é chave para todo e qualquer movimento de mudança e de consolidação institucional.
Não nos referimos aos que fazem história oficial e que pinçam explicações para justificar deslizes da política. É provável que democracia não signifique a mesma coisa em qualquer tempo ou lugar. E que a palavra minzhu (o povo é o senhor), utilizada vulgarmente para traduzir democracia na China, é um conceito que se opõe à tradição inaugurada por Confúcio, de exaltação da harmonia e obediência. Ou então, que Deng Xiaoping, o dirigente que abriu a China para o mundo com as reformas iniciadas em 1978, desenhou não a democracia ocidental, mas uma sob medida para o povo chinês, contida nos limites das quatro linhas: "socialismo, a ditadura do proletariado, o maoísmo e o partido".
Referências desse tipo são fartas e de uso fácil. Difícil, porém, será amenizar as consequências de uma ciência amordaçada para um país como a China que não mede esforços para diminuir a distância que a separa das fronteiras do conhecimento.
Os milhares de funcionários que zelam pelo sistema de censura fariam mais pela eficiência do país se ficassem menos preocupados em perseguir URIs, URLs, FTPs e HTTPs. Para o nervosismo da "nomenklatura" (e satisfação de todos os que desejam um mundo em que o conhecimento possa fluir livremente, a começar dos cientistas e pesquisadores chineses), uma sucessão infindável de geeks, hackers, nerds, dorks e dweebs, com seus correlatos em chinês, descobre a cada dia uma nova maneira de burlar os sistemas de censura*.

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