sexta-feira, fevereiro 05, 2010

ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

O lulismo e o pulo do gato

O ESTADO DE SÃO PAULO - 05/01/10


Vem dando o que falar o artigo de André Singer - Raízes sociais e ideológicas do lulismo - publicado na revista Novos Estudos, do Cebrap, disponível em http://novosestudos.uol.com.br/acervo/download.asp?idMateria=1356. O autor, professor do Departamento de Ciência Política da USP, foi porta-voz da Presidência da República durante o primeiro mandato do presidente Lula.

Uma preocupação central do artigo de Singer é entender o "pulo do gato" que levou à espetacular votação que Lula teve entre eleitores de "baixíssima renda" em 2006, em contraste com o que havia ocorrido em eleições anteriores, inclusive na de 2002. Votação providencial, porque "salvou o presidente da morte política a que parecia condenado pela rejeição da classe média", na esteira dos escândalos do primeiro mandato.

André Singer está convicto de que, além do Bolsa-Família e dos reajustes do salário mínimo, o compromisso de Lula com a manutenção da estabilidade macroeconômica cumpriu papel fundamental na conquista desses votos. Não chega a ser uma constatação nova. Tendo em vista que famílias de baixa renda são particularmente vulneráveis à instabilidade macroeconômica, isso já deveria ser ponto pacífico. Mas a verdade é que, para boa parte do PT, ainda não é. Persiste no partido resistência visceral à ideia de que os mais pobres possam ter sido os grandes beneficiários da decisão de Lula de manter - e aprofundar - a política macroeconômica de FHC. E é essa resistência que talvez explique a defesa alongada que Singer faz de tal ponto no artigo.

Repisado o ponto, Singer propõe que o duplo compromisso de Lula - com a estabilidade e com a ação distributiva do Estado - seja visto como o traço distintivo do que rotula de "lulismo". Neologismos à parte, a caracterização não parece fora de propósito, desde que restrita ao primeiro mandato de Lula. Mas mostra-se pouco aderente à realidade se estendida ao segundo mandato, quando, de um lado, o compromisso com a estabilidade se vem esvaindo a olhos vistos e, de outro, a ação distributiva em favor dos mais pobres vem sendo ofuscada por farta e crescente distribuição de benesses aos mais ricos nos guichês de favores do governo. O lulismo de 2010 já não é o de 2006.

No início de 2006 Antonio Palocci ainda era ministro da Fazenda. Muita coisa mudou desde então. Em meados de 2008 o compromisso com a estabilidade havia quase desaparecido. Resistia com grande dificuldade, acuado num último reduto no Banco Central, enfrentando a hostilidade escancarada da Fazenda, da Casa Civil e do resto do governo, em meio a notícias de que Henrique Meirelles estava prestes a ser substituído. Não fosse a injeção de bom senso que adveio da apreensão com os possíveis desdobramentos da crise financeira mundial, esse derradeiro reduto poderia ter sido subjugado.

Mas a crise trouxe também outras mudanças. Foi a desculpa que faltava para o governo relaxar de vez a política fiscal e montar às pressas ampla bateria de programas "pró business", movidos a dinheiro público e favores do Estado. Comparado aos generosos subsídios implícitos e explícitos envolvidos nesses programas, que hoje se estendem do BNDES ao pré-sal, o Bolsa-Família perde expressão. É o governo tentando minorar a concentração de renda com a mão esquerda enquanto alegremente a agrava com a direita.

Com o avanço do ano eleitoral, o governo vem tendo de lidar com as tensões da busca de dois objetivos incompatíveis. De um lado, quer a todo custo viabilizar a vitória de sua candidata com nova e vigorosa expansão de gasto público. De outro, está agora preocupado em manter as aparências e tentar restaurar, na reta final, parte da velha imagem de compromisso com a estabilidade macroeconômica que tanto lhe valeu em 2006. Até mesmo o ministro Mantega achou de bom-tom passar a desfilar seu recém-estreado lado austero.

Mas não vai ser tão fácil. Inclusive porque, desde 2005, a candidata oficial vem tendo atuação persistente e conspícua na resistência à condução de uma política macroeconômica coerente. Em vista dessas dificuldades, tem sido aventada até a possibilidade de que Henrique Meirelles, filiado ao PMDB, seja convocado para ser o candidato a vice-presidente da chapa governista. Seria um desfecho irônico. Mas improvável. Não é bem esse o papel que o PMDB espera que seu candidato desempenhe na coalizão com o PT.

*Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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