Um ser humano chegar ao topo do mundo é sempre um espetáculo raro. Se ele é brasileiro, fica mais interessante ainda. Pois o nosso presidente chegou lá — e não lhe faltam méritos.
Ele foi o Homem do Ano para o “El País” e para o “Washington Post”. Foi o Estadista Global do Fórum de Davos.
Deve ser, hoje, o político mais invejado do planeta, depois que Barack Obama viu minguar a sua lua de mel com o povo americano.
Como é viver no ar rarefeito dessas alturas? Costuma ser tão complicado que todas as grandes culturas humanas deixaram conselhos a esse respeito. A Bíblia trata disso naquela misteriosa passagem do Gênesis em que Deus diz a Adão: “Comerás de todas as árvores do jardim do paraíso, mas não da árvore da ciência do bem e do mal, pois no dia em que comeres, certamente morrerás.” Ao que a serpente contra-argumenta, escolhendo Eva como interlocutora: “De forma alguma: no dia em que comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses.” O que esse texto propõe, usando a linguagem dos mitos, é a noção dos limites: algumas coisas se pode fazer; outras, não. Isso também aparece nas histórias de fadas, como na do Barba Azul, que dá à sua jovem esposa todas as chaves do castelo, explicando que ela pode abrir todas as portas, menos uma.
Lula começou os seus dois períodos de governo singularmente atento à noção dos limites. Soube, com a sua fantástica intuição, que podia fazer muitas coisas, mas não mexer naquela última porta — a da política econômica, atacada por todos os seus colegas de partido.
Seguiu esse rumo por sete longos anos. Balançou no “mensalão”. Marcou ponto nos projetos sociais.
De uns tempos para cá, ele está diferente.
Começou a adotar um tom de voz tonitruante, como se dissesse: “eu sou o dono do poder”; a explodir em palavrões; a gastar o que tem e o que não tem, contratando um cenário preocupante para quem estiver na sua cadeira em 2011.
Fez coisas que um presidente não pode fazer — como ignorar decisões do Tribunal de Contas. Começou a campanha presidencial fora de hora, desrespeitando a Justiça Eleitoral.
Mas acaba de receber um aviso: pressão a 18 por 11, nada aconselhável no começo de um ano como este.
Não estou desfazendo da sua notável performance política. Ele é o povo brasileiro chegado ao poder; e o povo fala com voz rouca, não toma chá em salões Luís XV. Mas a noção dos limites fica sempre no fundo do cenário, e, um dia, cobra os seus direitos.
Aceitar os limites pode ser chato; mas é algo que faz parte da nossa maneira de ser. Não somos deuses, como queria a serpente. E é por imaginar que pode viver sem limites que o homem de hoje parece, às vezes, tão desorientado.
Num maravilhoso capítulo de Orthodoxy que se chama “The Ethics of Elfland”, Chesterton explica por que é a noção de limites que dá o sabor desta nossa aventura terrena. A Terra é preciosa porque é única — e telescópios apontados em todas as direções ainda não descobriram outra fonte de vida semelhante à nossa. A pessoa querida é preciosa porque é única, irrepetível.
E o ser humano é mais feliz num ambiente que reproduza um pouco as suas limitações — uma casa que não seja grande demais, uma paisagem que tenha um horizonte.
Lula mandou dizer a Davos que é preciso reinventar o mundo. Bonito.
Não se vive sem utopia. Mas o mundo não se deixa reinventar facilmente. E é por isso que, ao longo da história, os idealistas têm de dialogar com os pragmáticos. O “Dom Quixote” é o maior romance da literatura ocidental porque criou um adorável par de personagens: o Quixote idealista e o Sancho pragmático. Um não vivia sem o outro.
Lula sempre teve o physique du rôle de um Sancho Pança. E foi assim que ele se firmou na arena política: vestindo a voz dos oprimidos com um toque de realismo. Agora, ao que parece, ele se sente solto — “descolou do chão“, dizem alguns adversários políticos.
Isso poderia comprometer, a médio prazo, uma aventura pessoal que não tem paralelo na nossa história política.
Ele é muito melhor que um Chávez.
Mas depois de ter resistido (sabiamente) à tentação do terceiro mandato, precisa também resistir às sereias que cantam sem parar quando se chega ao topo do mundo. A democracia só funciona bem vários palmos abaixo disso
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