O papel de cada um
O GLOBO - 17/01/10
Desde outubro, o presidente Lula sabe que estava crescendo “chifre em cabeça de cavalo” devido ao Programa Nacional de Direitos Humanos e, na tentativa de chegar a uma posição que agradasse tanto aos militares quanto aos militantes de esquerda de seu governo, acabou fazendo com que o texto saísse da maneira que saiu, provocando a crise que teve depois de contornar. Aprofundando-se mais a apuração do que aconteceu nesses meses, aprende-se que é incorreto chamar a crise de “militar”, pois dois civis estiveram sempre à frente da oposição ao texto original da Secretaria de Direitos Humanos: o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins.
Este último, antigo integrante do grupo guerrilheiro MR-8, tendo inclusive participado do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, foi um auxílio inesperado e importante para o ministro Jobim, já que tinha, por sua própria história política, peso para discordar do caminho tomado na elaboração do Programa de Direitos Humanos original.
Além de pedir para que seu nome fosse retirado do decreto, Franklin Martins atuou nos bastidores para convencer Paulo Vannuchi de que não haveria ganho político em criar atritos com a área militar.
Ao contrário, a chefe do Gabinete Civil, ministra Dilma Rousseff, a quem estava afeita a aprovação final do decreto antes da assinatura do presidente, não quis interferir em favor do ministro da Defesa, provavelmente para se colocar bem com a ala esquerdista do governo, com o objetivo de tê-la a seu lado na campanha presidencial em que se candidatará à sucessão de Lula.
Os ministros Jobim e Vannuchi trocaram diversas mensagens no decorrer desses meses, negociando os termos da constituição da Comissão Nacional da Verdade e seus objetivos.
Jobim já havia alertado o presidente Lula de que ele, como jurista e ministro da Defesa, não poderia aceitar que o texto do decreto desse margem a que a Lei de Anistia pudesse ser revista.
Desde o início, a expressão “repressão política” estivera na berlinda, pois ela indicava que a tal comissão só analisaria um dos aspectos do período militar.
Jobim explicou para o presidente que os chefes militares já haviam acatado sua determinação de apoiar a constituição da Comissão da Verdade, para que todos os fatos ainda não esclarecidos com relação aos desaparecidos políticos venham a público — inclusive a localização dos corpos, para que as famílias possam enterrar seus mortos, como salientou o próprio presidente Lula, no fim da semana.
Foi Lula mesmo, aliás, quem estabeleceu, em conversas ainda em outubro, os limites que deveriam ser seguidos na elaboração do decreto dos direitos humanos, já alertado por Jobim de que o texto continha afirmações inaceitáveis.
A ideia de que o ministro civil da Defesa esteve emparedado pelos chefes militares no episódio é a que parece mais verossímil, mas o fato é que, por ser um político experiente e de temperamento forte, o comportamento de Nelson Jobim no episódio só fez reforçar o papel do Ministério da Defesa de ser um poder civil comandando os militares.
Ao sentir cheiro de queimado no texto original do decreto, Jobim assumiu a dianteira das negociações e chamou os chefes militares para uma conversa, em que ele deu a direção.
Declarou-se contrário à revisão da Lei de Anistia, como político e como jurista, mas defendeu a necessidade de que a Comissão Nacional da Verdade pudesse investigar e revelar fatos ocorridos durante os “anos de chumbo”.
Retirado o eventual caráter revanchista das investigações, a criação da comissão não enfrentaria resistências dos militares. Já nesta ocasião estava em discussão a troca da expressão “repressão política” por “conflitos políticos”.
Como Paulo Vannuchi insistia no uso de “repressão política”, alegando ao presidente Lula que era preciso usar uma expressão forte, houve um momento em que se pensou em pôr os dois termos no texto, para deixar claro que as apurações da Comissão da Verdade se dariam nos dois lados em confronto na ocasião.
Antes de viajar para Copenhague, para a reunião sobre o clima, Lula ainda foi alertado por Jobim de que o texto final do decreto que ele assinara não havia sido alterado, e ficou acertado que o chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, seria acionado para fazer a alteração, o que acabou não acontecendo.
Carvalho alegou que, quando o presidente falara com ele, o texto já estava sendo impresso na gráfica do Diário Oficial. O acerto que foi determinado após o regresso das férias de Lula, portanto, deveria ter sido feito antes da publicação do decreto criando o III Programa Nacional de Direitos Humanos.
Tudo indica que houve, pelo menos por parte do secretário nacional de Direitos Humanos, a tentativa de esticar a corda até o último momento, acreditando que, diante do fato consumado, os militares não reagiriam.
Os relatos de diversas fontes não permitem determinar exatamente qual foi o papel do presidente Lula no episódio.
Alguns consideram que Lula não estava realmente interessado em abrir uma discussão com os militares, e foi enganado por Vannuchi e Dilma Rousseff, que jogaram com o fato consumado.
Outros acham que o próprio presidente levou a negociação até o limite, interessado em dar mais espaço para sua ala esquerda, também acreditando que os militares não concretizariam a ameaça de pedir demissão.
A solução final, de criar um grupo de trabalho para elaborar o anteprojeto de lei que cria a Comissão da Verdade para “examinar violações de direitos humanos, ocorridas no regime militar” foi acertada entre o ministro Nelson Jobim e o secretário Paulo Vannuchi, antes da reunião dos dois com o presidente Lula.
Nenhum comentário:
Postar um comentário