Aquele misterioso momento
O GLOBO - 31/01/10
Roberto Calasso dirige a editora Adelphi e escreve livros sobre mitologia, literatura, arte e política com uma inteligência aguda – se bem que, às vezes, uma complexidade impenetrável. Chamou atenção pela primeira vez com "O casamento de Camdus e Haronia", uma longa reflexão sobre mitos ocidentais. Também escreveu sobre mitos orientais (“Ka”) e Kafka (“K”), sobre Talleyrand e a história europeia em As ruinas de Kasch, e coleções de ensaios sobre cultura em Literatura e os deuses e Os quarenta e nove passos. Seus textos estão cheios de sacadas, digressões que podem levar o leitor de um pequeno detalhe a uma cosmogonia, e são nunca menos que instigantes.
No seu último livro, Rosa Tiepolo, em inglês Tiepolo pink, Calasso escreve sobre o pintor veneziano do século dezoito Giambattista Tiepolo, e comenta uma série de gravuras feitas pelo seu filho Giandomenico sobre a fuga para o Egito de José, Maria e Jesus, segundo o relato bíblico. Uma das gravuras mostra a sagrada família na estrada passando pela estátua de uma deusa semi-nua – cuja cabeça acaba de cair, e está a centímetros de se estilhaçar no chão.
Escreve Calasso: “Pode ser dito que este momento marca o fim da era pagã e o começo de algo que a princípio é apenas uma jovem mulher com um bebe numa estrada solitária. Muitos tentaram, em palavras ou imagens, retratar aquele misterioso momento a partir do qual os mundos pagão e cristão coexistiram, o primeiro como uma paisagem de ruinas e uma estátua mutilada, o outro como uma débil, obscura pulsação de vida. Mas só Giandomenico ousou fixar o momento no instantâneo de um detalhe. É assim que a história acontece, nos diz a imagem. Por meio de fraturas que podem facilmente passar desapercebidas. Mas que são irreversíveis.”
Uma era pode estar acabando e outra começando neste momento. Só saberemos quando um Tiepolo, ou um Calasso, nos disserem.
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