SÃO PAULO - Anos atrás, parecia mais fácil chamar São Paulo de "terra da garoa". Daí vêm os Demônios da Garoa, grupo dos anos 1940, que se consagraria interpretando os sambas de Adoniran Barbosa. O autor do "Trem das Onze" resistiu ao tempo, mas "terra da garoa" há muito deixou de ser só um apelido carinhoso. Diante da evidência de que a cidade foi derrotada pelas águas, o velho epíteto passa hoje por piada de mau gosto. Repare na anomalia da situação. O Datafolha fez ao paulistano a seguinte pergunta: entre os problemas da cidade, qual deveria ser solucionado com prioridade? A resposta de 29%: as enchentes. Em segundo lugar, a falta de médicos e de hospitais públicos -com 13%. Mas não vivemos em Veneza. Ainda não adotamos as gôndolas como meio de transporte. Os canais navegáveis do aprazível Jardim Pantanal ainda não foram descobertos pelo turismo. São Paulo -vale lembrar- não está no nível do mar. O resultado da pesquisa é a confissão coletiva de um colapso urbano, de uma tragédia histórica ainda não assimilada inteiramente. Ou não parece muito, muito estranho que, nessa cidade complexa e de tantas mazelas, as enchentes sejam citadas como maior problema por quase um terço do povo? Isso não significa, é claro, que outras carências estejam equacionadas. Sabemos que não. O trânsito inviável, a violência das ruas, as condições precárias da saúde pública, a falta de moradia decente -a lista é vasta e nos afasta da vida civilizada. Há regiões da cidade cujo IDH (índice de desenvolvimento humano) é equiparável ao da Dinamarca; e há outras, bem mais numerosas, na periferia leste, em que o IDH é inferior ao de países africanos. É óbvio que o resultado do Datafolha está associado à época do ano. O problema não é esse, mas o inverso: findo o verão, esquecemos os traumas da chuva com rapidez espantosa. A capacidade de adaptação ao absurdo é, como Adoniran, um patrimônio da terra da garoa. |
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