Euforia e êxtase
O ESTADO DE SÃO PAULO - 11/12/09
A súbita e radical experiência de descompressão fiscal a que o governo se submeteu desde meados do ano passado parece ter deixado a Esplanada dos Ministérios em preocupante estado de euforia. O governo agora se comporta como se estivesse convencido de que já não há limitações fiscais relevantes a ter em conta.
Essa descompressão, que combina explosiva expansão de gastos primários correntes com forte queda de arrecadação, já fez o superávit primário do setor público cair a menos de um quarto do que era. Não obstante toda a contabilidade criativa utilizada, tanto do lado da receita como da despesa, os dados acumulados em 12 meses mostram que o superávit despencou de 4,4% do PIB, em outubro de 2008, para 1% do PIB, em outubro de 2009. A tentativa de racionalizar tal afrouxamento como política contracíclica soa a cada dia mais patética, à medida que a economia se recupera a olhos vistos e o expansionismo fiscal segue inabalável, sem qualquer sinal de reversão.
Um afrouxamento fiscal dessa magnitude jamais teria sido factível, não fosse a mudança no ambiente externo trazida pela crise financeira internacional e a complacência com que o Brasil passou a ser avaliado no exterior. Extasiado com a extensão dessa complacência, o governo parece agora tentado a acreditar que já não tem mais restrições fiscais relevantes a respeitar. Pelo menos até onde a vista alcança. O que hoje, em Brasília, significa um horizonte que mal chega ao final de 2010.
Essa reavaliação mais cínica e imediatista do quadro fiscal vem fomentando um clima de megalomania e dissipação de recursos, fundado na presunção de que dinheiro público é o que não falta. Tornam-se cada vez mais generosos os guichês de favores do governo e multiplicam-se as missões inadiáveis e os projetos grandiosos com custo a ser debitado ao Tesouro.
O BNDES é um bom exemplo. Tendo já espetado quase R$ 140 bilhões no Tesouro em 2009, o banco agora quer mais R$ 80 bilhões. É o que vai precisar "para passar 2010 com tranquilidade", "mostrar que para bons projetos não falta dinheiro" e ajudar as grandes empresas a enfrentar a "ferocidade horrível" da competição global depois da crise.
Por sorte, ainda há no próprio governo quem seja capaz de manter a lucidez. E de fazer contas. Um estudo recente de Mansueto Almeida, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), reportado no Estado de 7/12, estima que o ônus fiscal dos empréstimos do Tesouro ao BNDES seria da ordem de R$ 10 bilhões por ano, tendo em conta a diferença entre o custo dos recursos para o Tesouro e as taxas cobradas pelo banco. Trata-se de montante equivalente a nada menos que 85% dos gastos com o Bolsa-Família em 2009.
Mas, por contundente que seja, essa conta não chegou a comover os guardiães do Tesouro. Lá se vão mais R$ 80 bilhões para o BNDES. E o assédio ao caixa está longe do fim. O mesmo clima que deu alento à investida do BNDES tem também fomentado vasto leque de outros projetos dispendiosos, com conta a ser paga pelo Tesouro, como a capitalização da Petrobrás e da Eletrobrás, o trem-bala e a reencarnação da Telebrás como estatal da banda larga.
A reavaliação do quadro fiscal vem tendo também outras implicações importantes. Percebendo que a deterioração fiscal já não terá, de imediato, as consequências que costumava ter, o governo mostra-se agora menos inclinado a se desgastar para evitar a aprovação no Congresso de propostas estapafúrdias que, em outras circunstâncias, teriam feito soar o alarme e deflagrado pronta mobilização de todas as reservas políticas do Planalto. Basta ver a leveza com que o governo tem tratado as devastadoras bombas fiscais que vêm tramitando no Congresso. Dada a nova relação custo-benefício, o cálculo político mudou. O presidente Lula fez o que pôde para não ter de incorrer no ônus de se opor frontalmente às propostas de extinção do fator previdenciário e de reajuste de todos os benefícios previdenciários pelo salário mínimo. Agora, no último momento, para evitar o pior, se permitiu conceder, por medida provisória, reajustes acima da inflação a todas as aposentadorias e pensões pagas pelo INSS. Achou que havia folga fiscal para tanto.
Para o País, obrigado a trabalhar com um horizonte que ultrapassa em muito o final de 2010, o que tudo isso prenuncia é um preocupante entalo fiscal no próximo mandato presidencial.
Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
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