Senhores das finanças
O ESTADO DE SÃO PAULO - 28/12/09
A intensidade da crise em 2008-2009 fez muita gente refletir sobre as suas causas e buscar paralelos na história.
O sucesso do livro de Liaquat Ahamed Lords of Finance ? The Bankers Who Broke the World (The Penguin Press, Nova York, 2009) deve ser explicado neste contexto. Tornou-se best seller, pois, ao menos à primeira vista, parecia encerrar lições sobre a crise atual baseadas no que se passou durante a Grande Depressão.
Bem escrito e com criteriosa escolha de material bombástico, o livro gira em torno de quatro banqueiros centrais que desempenharam papéis cruciais no final da década de 1920 e início da década de 1930, quando a Grande Depressão atingiu duramente as economias desenvolvidas e, em menor medida, a periferia da economia mundial.
Os quatro personagens parecem caricaturais, mas não o são. Montagu Norman, do Banco da Inglaterra, solteirão com inclinações espiritualistas e o padrão-ouro como religião. Benjamin Strong, do Federal Reserve, de Nova York, saúde combalida e propenso a levar em conta o impacto internacional das políticas dos Estados Unidos. Hjalmar Schacht, mago duas vezes: ao promover a estabilização alemã de 1923-1924 e ao escapar absolvido em Nuremberg. Émile Moreau, com participação importante na estabilização do franco, entremeava trocas de insultos com Norman com as delícias da caça em Saint-Léomer, onde era prefeito.
A história de Ahamed é prejudicada pela saída de cena de três dos seus personagens antes de 1931 ? ou seja, antes que a Grande Depressão fosse identificada como realmente grande.
Strong, com péssima saúde desde a juventude, morreu em 1928. Moreau, depois de muitos anos no serviço público, resolveu ganhar dinheiro no Paribas. E Schacht, em episódio de lamentável oportunismo, já namorando a extrema direita, pediu demissão em 1930. Seus sucessores não estavam na mesma liga quanto à competência e, muito menos, quanto a pitorescos detalhes biográficos.
Ahamed, em seu balanço dos fatores que contribuíram para agravar a Grande Depressão ? depois de censurar os políticos responsáveis pelo Tratado de Versalhes ?, arrola os quatro personagens porque teriam insistido em restabelecer o sistema monetário internacional com base no gold exchange standard (o padrão-ouro). É uma avaliação que merece ser qualificada.
O nível fixado de reparações alemãs aos vencedores decorreu, em parte, da frustração da França em relação a garantias políticas sobre futuras iniciativas alemãs que ameaçassem a sua integridade territorial. As críticas, parcialmente fundadas, sobre seu realismo, tiveram como subproduto inevitável a complacência em relação à Alemanha ? colocada na posição de vítima ? e a antipatia em relação à França. Era a posição britânica, de Keynes a Norman.
É preciso muita visão retrospectiva para condenar os quatro banqueiros por sua insistência na volta ao padrão-ouro.
Se tal condenação fosse razoável, deveria ser dirigida aos analistas que sustentaram tal posição em nome da ciência econômica, talvez com posição destacada para Gustav Cassell ? o grande inspirador da volta coletiva ao padrão-ouro nos anos 1920, em seguida às conferências de Bruxelas e Gênova. Nem mesmo Keynes imaginou que a Grã-Bretanha não voltasse ao padrão-ouro: havia controvérsia apenas sobre a paridade a ser adotada.
É claro que os quatro personagens podem ser criticados. Strong, por sua lentidão em furar a bolha especulativa que já dominava Wall Street em 1928. Schacht, por sua complacência com o endividamento alemão em Wall Street e pela sistemática prevaricação quando se tratava de negociar reparações que culminaram na sua renúncia em 1930. Moreau, pela teimosia em relação à manutenção de pagamentos de reparações irrealistas pela Alemanha e pela ineficácia em adotar medidas compensatórias quando a França acumulou importantes reservas em ouro, depois da estabilização de facto do franco. Talvez mais do que todos, Montagu Norman, estumando Schacht e à raiz da decisão equivocada em relação à volta da libra ao padrão-ouro com paridade sobrevalorizada.
As fricções britânicas com a França, já importantes em relação às reparações alemãs, tornaram-se quase insuportáveis quando Norman começou a tentar influenciar Moreau a ajustar a política monetária francesa para que não houvesse pressão sobre as reservas britânicas.
É claro que hoje estamos em outros tempos. Não apenas seria improvável que um governador de banco central passasse dois meses de férias anuais na Côte d"Azur ou no Maine, como num sanatório no Colorado, ou que uma conferência internacional fosse interrompida por conta de eleições em Saint-Léomer.
Os fatores mais importantes para explicar a Grande Depressão de 1929-1933 foram as dívidas geradas pela guerra, incluindo as reparações, e a crença religiosa no padrão-ouro.
Embora existam hoje na economia mundial distorções estruturais de grande importância ? em particular, a acumulação de títulos denominados em dólares em economias emergentes ?, há maior flexibilidade em relação a ajustes de paridades cambiais. Além disso, as lições dos anos 30 sobre vulnerabilidade dos intermediários financeiros e a importância da política fiscal anticíclica foram plenamente absorvidas.
Mesmo que as possíveis lições da história devam ser qualificadas, o livro está repleto de citações deliciosas. A melhor para uso brasileiro é de Norman: "Embora comerciantes e industriais professem real afeição por estabilidade, estão sempre em busca de uma talagada de conhaque na forma de inflação."
Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
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