segunda-feira, novembro 16, 2009

EDITORIAL - FOLHA DE SÃO PAULO

Lula e seu duplo

FOLHA DE SÃO PAULO - 16/11/09


Entrevista do presidente à TV permite entrever aspectos que fogem dos estereótipos construídos em torno de sua pessoa

MARCADA por um tom pessoal e emotivo, a entrevista do presidente Lula com o jornalista Kennedy Alencar, transmitida ontem pela Rede TV!, talvez tenha como principal efeito o de colocar em segundo plano as avaliações de cunho estritamente político, habitualmente suscitadas por ocasiões desse gênero.
Rememorando cenas da infância, narrando o episódio da morte de sua primeira mulher, considerando o impacto da desestruturação familiar sobre sua própria vida e a de tantos outros brasileiros, Lula comoveu-se, sendo de imaginar que mesmo o espectador mais infenso ao chamado carisma presidencial não terá reagido com indiferença àqueles momentos da entrevista.
Sem dúvida, a origem humilde e a trajetória de sucesso contribuem bastante para o prestígio e a identificação pessoal que Lula obteve, ao longo desses anos, na maioria da população.
Seja como for, e abstraindo-se desta análise o peso específico dos acertos e erros de seu governo, a figura pessoal do presidente Lula está longe de fixar-se nos quadros de uma narrativa sentimental. Nesse sentido, a entrevista deste domingo talvez possa esclarecer as contradições que o presidente, como qualquer outra pessoa, parece abrigar em sua personalidade.
Encerrado o bloco biográfico, a entrevista enveredou pela política. Lula apresentou, nesse passo, uma versão incompleta e reticente, mas ainda assim inesperada, da crise do mensalão. A seguir sua linha de raciocínio, todo o escândalo teria sido uma "armação". Pelo que ficou sugerido, recairia sobre o publicitário Marcos Valério a suspeita de que, dadas suas ligações anteriores com o PSDB, tratou de envolver o PT numa armadilha, visando ao impeachment do presidente.
Nada seria mais inconvincente do que essa explicação -que, de resto, não eximiria o PT da disposição, nada inocente, de participar do esquema concebido pelo publicitário. Lula não foi adiante nessa fabulação -e teve tanta desfaçatez para construí-la quanto para dissipá-la numa nebulosa de evasivas.
A calculada reticência do presidente contrasta com o emocionalismo da primeira parte da entrevista. Poucas vezes Lula terá revelado, como neste domingo, de que modo em sua personalidade se combinam o fleumático e o sanguíneo, o sinuoso e o direto, a espontaneidade e a astúcia.
A célebre "simplicidade popular" do presidente, a que não faltam despropósitos de antologia, convive assim com os traços clássicos da manipulação palaciana e do frio autodomínio dos que estão habituados ao poder.
"Povo" e "elites" são categorias simplórias demais para entender a prática da política brasileira: elementos típicos de uma e outra compõem o estilo pessoal de Lula -que replica, de resto, a realidade de seu próprio governo, onde antigos revolucionários se confraternizam com oligarquias seculares, sem escândalo para ninguém. Ou melhor, com os escândalos que se conhecem.

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