Deterioração fiscal e aquecimento
O ESTADO DE SÃO PAULO - 30/10/09
É pouco, mas melhor que nada. Em entrevista ao Estado de domingo, o economista Luciano Coutinho saiu de seu caminho para enfatizar a necessidade de se conter a expansão desenfreada de dispêndio de custeio do governo. Embora tenha qualificado sua opinião como a de "um simples economista e cidadão, que por acaso é presidente do BNDES no momento", a manifestação soou como um pequeno sopro de bom senso em meio à crescente insensatez que vem marcando o discurso do governo sobre a evolução do quadro fiscal.
Os mais otimistas, contudo, devem refrear seu entusiasmo. Qualquer que tenha sido a inspiração da manifestação do presidente do BNDES, não há razões para percebê-la como prenúncio de uma guinada na política fiscal do governo. Primeiro, porque Luciano Coutinho não é exatamente um paladino da austeridade fiscal. Acaba de pespegar uma conta de R$ 100 bilhões no Tesouro Nacional. E quer repetir a dose ano que vem. Segundo, porque o presidente Lula continua comprometido até os ossos com a ideia de um ano eleitoral apoteótico, fartamente regado a gasto público. Conta com isso para enfrentar o desafio de fazer sua candidata decolar. E tudo indica que, se os projetos de investimento do governo continuarem empacados, não hesitará em turbinar ainda mais a expansão de gastos de custeio.
Tampouco há razões para ver na manifestação de Luciano Coutinho o prenúncio de que, não obstante toda a farra fiscal preparada para o ano eleitoral, haveria disposição da candidata Dilma Rousseff de apresentar ao País uma plataforma de governo que fizesse da contenção de gastos de custeio o esteio de um programa de crescimento econômico no próximo mandato presidencial. Seria bom se fosse verdade. Mas o fato é que a trajetória da ministra nos últimos anos inviabiliza a adoção desse discurso, ainda que se leve em conta a incrível capacidade de metamorfose que o PT já mostrou ter no passado. Dessa vez vai ser difícil repetir a mesma mágica.
É preciso lembrar que em 2005, quando o ministro Antonio Palocci defendeu esforço similar de contenção da expansão dos gastos de custeio do governo federal, a ministra Dilma Rousseff, coadjuvada pelo ministro Guido Mantega, fez de tudo para torpedear a iniciativa. E, desde que o presidente Lula se permitiu a extravagância de escolher um ministro da Fazenda que jamais lhe dissesse não, Dilma Rousseff tem formado com Mantega uma imbatível dobradinha na defesa da expansão de gastos de custeio, pronta a recorrer a todo o tipo de mistificação. Por exemplo, rotulando qualquer crítica ao descontrole de gastos do governo como "defesa do Estado mínimo".
É difícil, portanto, que Dilma Rousseff se sinta confortável para defender em campanha um programa de contenção de gastos de custeio do governo, como parte de um esforço de aumento da taxa de investimento no País, como agora prega Luciano Coutinho. O problema, contudo, é que as contas públicas continuam em franca e incômoda deterioração. A Fazenda enfrenta uma combinação perversa de expansão desmesurada de gasto com desesperante dificuldade de reverter a perda de eficiência da máquina arrecadadora que adveio do insensato aparelhamento que Mantega orquestrou na Receita Federal. Não obstante a vigorosa recuperação da economia, a arrecadação federal continua em queda.
Premido pela deterioração do quadro fiscal, o governo tem aventado a criação de um novo tributo a cada mês. Não faz muito tempo, tentou ressuscitar a CPMF, com uma alíquota mais baixa, "para a Saúde". Há poucas semanas lançou o balão de ensaio da taxação de exportações, uma proposta que há muito encanta admiradores locais da desastrosa política neoperonista adotada já há vários anos na Argentina. Mais recentemente, surgiu uma terceira ideia, imediatamente posta em prática. Os 2% de IOF sobre entrada de capitais, por inócuos que possam ser nos seus efeitos sobre o câmbio, trarão um reforço não desprezível à arrecadação. Mas não a ponto de evitar a brutal erosão da situação fiscal que estará evidenciada quando as contas de 2009 forem afinal divulgadas no começo do ano que vem.
Essa perspectiva aponta para um quadro de crescente desconforto de Mantega perante o Planalto nos próximos meses. Para o governo, pode ser conveniente já ter alguém com discurso adequado no aquecimento.
Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio.
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