Finalmente um filme de cinema. Finalmente um filme que nos prende na cadeira, eletrizados, não por fogos de artifício, mas pelo roteiro, pela "suspensão da descrença", como dizem os dramaturgos americanos, pela "paixão, emoção e ação" como sentenciou Samuel Fuller, um dos pais de Tarantino. Para mim, ele é o cineasta mais interessante do mundo. É corrosivo e contra o mal (exibindo-o) e vai muito alem dos filmes "engajados" que mostram que a justiça é injusta ou que a miséria é miserável.
Ali, na ponta da língua, no "bate-pronto", no drible ao obvio e no uso do obvio, nos gols de placa da "mise-en-scene" é que Tarantino critica (se é que esta palavra antiga serve) o tempo atual: pela "forma", pelo estilo.
Seu alvo é a estupidez do cinema hipócrita e careta, falsamente "correto". Em "Kill Bill 2" ( o "Kill Bill 1" é uma porcaria, bem como os filmes que ele produziu para o oportunista mexicano Roberto Rodriguez) Tarantino põe na boca de David Carradine (que morreu se masturbando em Hong Kong, como numa cena de Tarantino) a sentença: "O Clark Kent é a idéia que o Super-Homem faz da humanidade"...
Tarantino não perde tempo em condenar mais nada. Sabe que não adianta. Ele filma dramas com a lente do cinismo, faz parodias sem finalidades didáticas, sem esperança de melhorar nada. Seu tema principal é a "vingança". Desde "Cães de Aluguel", ele trabalha com este "plot" primitivo e eterno. Desde os gregos, a vingança é o tema maior de tragédias e epopéias.
Em "Bastardos Inglórios" ele nos serve a "vingança" como um copo de fogo, um "drinque no inferno", que aqui é bem mais ampla do que Uma Thurman querendo se vingar de Bill. Em "Bastardos" temos a vingança dos judeus humilhados, a vingança dos homens delicados contra os boçais e brutos, a vingança dos inteligentes contra os estúpidos que hoje dominam o mundo. Um planeta onde há ditadores como Chavez ( que a mula do Oliver Stone idolatra) ou como aquele rato do Irã, não há lugar para criticas em nome da "razão", essa pobre mendiga francesa do Iluminismo. No entanto, ele nos vinga. Ele avacalha o que não pode resolver, como uma vez falou o "Bandido da Luz Vermelha". Tarantino não se preocupa com realismo histórico, com regras narrativas "progressistas"; neste filme, ele tranca o Hitler, o Goering, o Borman e o Goebells, dentro de uma sala de cinema em Paris, (o poético ninho da esperança com que os diretores/autores sonharam nos anos 60) e muda o fim da Segunda Guerra. Sua violência é cômica.
Para Tarantino a realidade é sua cabeça de cinéfilo. Tarantino brilha e traz de volta às telas a grande tradição do melhor que o cinema americano já fez. Ele escreve bobagens, diálogos vazios , reações absurdas de personagens, citações de cinema ("Dirty Dozen" de Aldrich é uma das sementes de "Bastardos" ), e assim enfrenta o drama atual da arte: retratar o quê? Com que fim? Para o bem? Para a moral, para a política? Como fazer um cinema bondoso num mundo mau? Como construir esperança num mundo ridículo?
Para isso, transforma as personagens em "coisas". Acaba com a "psicologia" naturalista e assume uma aparente "superficialidade", que nos traz saudades de uma seriedade perdida.
O cinema comercial de Hollywood transforma a vida humana em "clichês" e Tarantino usa os "clichês" para falar da vida humana. Ele mostra que somos todos "clichês".
Ao ser absolutamente desumano, cínico e violento, ele expõe a decadência da compaixão e do humanismo. Ao adotar o debochado cinismo diante de qualquer romantismo, ele nos lembra uma delicadeza que se perdeu. Ao usar uma linguagem solta e louca, ele nos dá uma "pala" de um cinema livre da mediocridade de Hollywood. Ao não dizer nada, ele diz tudo.
Alem das revistas de crimes, e dos gibis "noir", a grande influência sobre Tarantino, (como a de Jarmusch, Hal Hartley, Van Sant) foi Jean-Luc Godard. Ali está a raiz de sua liberdade. É curioso que os talentos americanos comam do pão que Godard amassou nos anos 60.
Jean-Luc ficou no limbo do cinema há anos, transformado pela caretice internacional em caso "excêntrico", em um dinossauro estruturalista. A liberdade que esse Picasso do cinema nos deu foi batizado de "chatura", de "complicação", um passado incômodo a ser esquecido para que o cinema careta voltasse a fluir. Assim, alem da publicidade e videoclips, Godard acabou diluído pelo baixo anarquismo de imitadores baratos tipo Leos Carax ou Luc Besson.
Mas, como o tempo não pára, Hollywood teve de dar comida para a fome contemporânea de mutações incessantes e passou a produzir filmes que são o simulacro de um tempo "descontrolado". A "loucura do mundo" virou tema de grandes produções - nuvens de fumaça para disfarçar a estupidez do óbvio, como os "Matrix", "Clube da Luta" e tantos outros. Esses filmes são delírios de imaginação, com fotografias extraordinárias, montagem frenética e sincopada, contraluzes infernais, tudo eficientíssimo, mas , por baixo do pano, não passam de abacaxis lineares. A falsa "novidade" desses filmes vem somente para deixar tudo exatamente como sempre foi.
Daí a importância de Tarantino. Ele rompe com o segredo mais bem-guardado do cinema americano: o realismo burguês. Hollywood aceita tudo: comédia, pastelão,
menos a paródia; aceitam tudo, desde que dentro da moldura frouxa da "verossimilhança" americana.
Aí, Tarantino chega e polui a limpeza do "mainstream" com sua linguagem cínica e, ainda por cima, faz imenso sucesso comercial sua vingança.
Por trás da paródia de Tarantino não há o louvor de uma "outra realidade" melhor. Ela já esta condenada quando o filme começa.
Tarantino ri da superficialidade da violência e, assim, expõe em carne viva o problema maior do mundo atual: a violência da superficialidade.
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