Abuso e intimidação
FOLHA DE SÃO PAULO - 12/09/09
Governo Kirchner segue padrão latino-americano ao invadir, numa falsa operação fiscal, o maior jornal de oposição
NO MESMO DIA em que noticiava mais uma irregularidade do governo Kirchner, desta vez num órgão subordinado ao fisco, o jornal argentino "Clarín" se viu invadido por um batalhão de cerca de 200 funcionários da Receita Federal.
Não estavam lá, evidentemente, para examinar as contas do principal órgão de imprensa da Argentina: um trabalho técnico de fiscalização não exigiria, sem dúvida, mais do que cinco auditores qualificados.
Estavam lá na tentativa primária de intimidar um jornal oposicionista. A Folha, que sofreu truculência equivalente nos primeiros dias do governo Collor -quando policiais federais ocuparam seu prédio sob o mesmo pretexto-, conhece bem o tipo de mentalidade por trás desse gênero de operações.
Ao contrário do que acontece nos casos clássicos de golpes militares latino-americanos, nenhum regime fascista surge pronto do dia para a noite.
Atos isolados de baderna, manifestações "espontâneas" de depredação e vandalismo, discursos ameaçadores que mais ou menos se desmentem em seguida, supostos "erros administrativos" dos escalões inferiores -é com esse tipo de ensaio que se vão testando as reais resistências do sistema democrático à investida autoritária.
Na pior das hipóteses, os mandatários da aventura podem sempre declinar de qualquer responsabilidade pelo que aconteceu; um capanga de menor envergadura será repreendido, o auxiliar de terceira linha será convidado a deixar seu posto, e tudo em tese volta ao normal.
Na hipótese de sucesso, a escalada continua. É o caso do venezuelano Hugo Chávez, que das mais variadas formas vai sufocando a democracia em seu país, e aperta o cerco -também com medidas de cunho supostamente administrativo- contra os meios de comunicação.
Decerto os índices de popularidade do governo argentino não lhe propiciam os lances de autoconfiança "bolivariana" registrados no norte do continente.
Mesmo assim, o desrespeito à liberdade de expressão é endêmico na América Latina.
Jornais são invadidos, em regimes formalmente democráticos. Bravatas e repreensões veladas fazem parte do discurso de quase todo governante. O direito à crítica parece ser visto como um ato de abuso e injustiça contra supostos benfeitores do povo.
Mesmo em algumas instâncias judiciais, a censura prévia é considerada forma legítima de controlar um órgão de comunicação. Haja vista o caso do jornal "O Estado de S. Paulo", há mais de um mês impedido de publicar notícias sobre alguns negócios da família Sarney.
Encarado de modo pessoal, familiar e caudilhesco, o poder não se conforma com a revelação das inúmeras irregularidades e abusos com os quais se perpetua. A boa notícia é que na América Latina ainda há jornais que tampouco se conformam com o estado de submissão e oficialismo a que querem reduzi-los.
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