quarta-feira, setembro 23, 2009

DANTE SICA

Uma relação ao ritmo da crise


O Estado de S. Paulo - 23/09/2009
Nos últimos 15 anos, o comércio e as relações bilaterais entre a Argentina e o Brasil têm-se movimentado ao ritmo de variadas e sucessivas crises. Períodos de expansão seguidos por momentos de contração e acordos que impulsionaram os investimentos, para logo sofrerem uma freada ou serem executados apenas parcialmente, são circunstâncias que se intercalaram uma após a outra e marcam o andamento dessa relação. Até o momento, essa conjuntura contribuiu com a música para a dança dessa dupla, que nem sempre baila ao som do tango ou do samba.

Depois da criação do Mercosul, o comércio bilateral expandiu-se em grande velocidade graças à redução das tarifas alfandegárias e à interdependência de ambas as economias. Mas, no final da década passada, a crise das economias emergentes pôs fim a essa etapa e desde então as divergências econômicas e comerciais entre a Argentina e o Brasil passaram a se ampliar.

De 2005 em diante, iniciou-se um período de distensão, possibilitado pelos bons resultados da Comissão de Monitoramento do Comércio Bilateral, que determinou o tratamento a setores sensíveis dos dois países, particularmente da Argentina. E, embora a balança comercial tenha sido cada vez mais deficitária para a Argentina, em razão do desequilíbrio no intercâmbio de bens industriais, o comércio bilateral cresceu de maneira acelerada até 2008, com uma redução dos conflitos. Para tanto também contribuíram a boa sintonia política e o elevado crescimento da Argentina, o que possibilitou uma diminuição do fosso macroeconômico.

Entre 2003 e 2008, o comércio bilateral sofreu um incremento da ordem de 233%, passando de US$ 9,295 bilhões para US$ 30,956 bilhões, com um crescimento mais acelerado das importações argentinas (+ 276%) do que de suas exportações (+ 189%).

Além disso, foi inaugurado um novo eixo na relação bilateral: os investimentos diretos, impulsionados pela recente internacionalização das empresas brasileiras, que, daqui em diante, determinarão o ritmo da relação, uma vez que, do ponto de vista comercial, o Mercosul não tem um peso relevante para o Brasil.

Na verdade, os investimentos brasileiros na Argentina já são uma realidade: nos últimos seis anos, os investimentos de origem brasileira situaram-se em torno de 20% do total dos investimentos estrangeiros diretos (IEDs) recebidos pela Argentina entre 2002 e 2007. Somente os anúncios de investimentos de empresas brasileiras somaram, de 2004 até agosto de 2008, US$ 10,714 bilhões. Cerca de 52% desse total se destina ao setor industrial e quase 40% ao de petróleo e gás, enquanto 8% iriam para a construção e 0,3% para serviços.

Esperava-se que nessa nova etapa de expansão, além do aumento do comércio bilateral e dos investimentos, houvesse um avanço nos temas pendentes da integração do Mercosul. Mas, enfim, esse avanço não se verificou e, agora, essa tarefa será muito mais difícil, num mundo em que se observa uma nova onda de medidas protecionistas. Mais uma vez, a música muda de acordo com a crise.

Ruído de jazz - Nos primeiros sete meses deste ano de 2009, a queda do comércio bilateral já chegou a 32,5%, retornando a níveis semelhantes aos de 2006. O ruído do "efeito jazz" - como a presidente Cristina Kirchner chamou, sem muita repercussão ou propriedade, a atual crise - irrompeu com estrondo numa festa de tango e samba.

Para enfrentar esse contexto a Argentina decidiu implementar medidas de restrição às importações, por meio de instrumentos como as licenças não-automáticas, direitos antidumping e valores-critério (valor-critério: um preço mínimo para a entrada de produtos importados no país), que afetaram com maior intensidade os fluxos de comércio com o Brasil. E, portanto, voltou a aumentar o clima de conflito bilateral, que se tentou resolver com uma nova rodada de negociações setoriais, incluindo os setores sensíveis tradicionais e outros novos.

Essa disputa se baseia nas diferentes percepções do conflito que têm ambos os países. Para a Argentina, as medidas justificam-se como uma maneira de compensar o escasso avanço das questões pendentes da integração, que foram responsáveis pelo elevado déficit no intercâmbio industrial com o Brasil. Para este último, negociar nos mesmos setores representa um passo atrás no avanço conseguido nos últimos anos, mas o pior é que os novos acordos alcançados não vêm sendo cumpridos por causa da demora da Argentina na autorização das licenças, aumentando a incerteza quanto ao futuro.

As medidas de restrição implementadas pela Argentina chegam a 17,2% do montante importado do Brasil. Portanto, os temas de maior repercussão na agenda atual são o aprimoramento da operacionalidade do sistema de licenças, a continuidade e o monitoramento do cumprimento dos acordos setoriais, a análise de eventuais desvios de comércio e seguir com a implementação das medidas de defesa comercial.

Essas negociações se darão num contexto pré-eleitoral no Brasil, no qual surgem vozes internas que reclamam uma atitude não tão branda com relação à Argentina.

A crise atual provocou a perda de parte do terreno ganho, não somente em termos de intercâmbio comercial, mas também no tratamento diferenciado para os setores sensíveis. Está faltando analisar formatos, mecanismos e os demais assuntos de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o mais imprescindível e que está em falta é a consolidação das estruturas de consulta e tomada de decisões no âmbito bilateral, a fim de que os sócios mais importantes do Mercosul não terminem sempre dançando ao ritmo imposto pelas crises.

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