domingo, agosto 16, 2009

MARIO VARGAS LLOSA

A riqueza do casal Kirchner

O ESTADO DE SÃO PAULO - 16/08/09

Crise do capitalismo? Sim, nos últimos anos, o poderoso sistema capitalista, ao mesmo tempo tão injuriado e difundido, de aparência indestrutível, deu sinais de desmoronamento em escala planetária. Não por ação de seus velhos inimigos, os comunistas e socialistas radicais, mas por causa do que o profeta Karl Marx chamou de "contradições internas", ou seja, a corrupção e a irresponsabilidade dos seus banqueiros, financiadores, empresários, especuladores, fraudadores, piratas, que cegos pela febre do lucro e da ganância pecuniária empurraram o capitalismo para o abismo, onde ele acabou caindo e se despedaçando - ou melhor, quase.

As consequências foram catastróficas: bancos faliram, bolsas despencaram, milhões de empregos desapareceram, o nível de vida de três quartos da população do globo desabou, empresários famosos foram para a prisão porque a crise revelou suas safadezas e trapaças, enfim, os ricos deixaram de ser tão ricos, a classe média empobreceu e os pobres ficaram miseráveis.

Claro, felizmente, houve algumas exceções à regra, o que dá uma esperança de sobrevivência ao sistema, isto é, uma recuperação alicerçada em bases mais firmes e bem sucedidas. Citemos como exemplo o caso de capitalistas que não só conseguiram escapar da crise, mas que, em um período de tragédia e ruína, conseguiram multiplicar seu capital.

A quem me refiro? Ao casal Néstor e Cristina Kirchner, é claro. O ex-presidente da Argentina e sua sucessora, a atual presidente do país, possuíam, em 2003, um patrimônio de US$ 1,7 milhão, fortuna apresentada em sua declaração de renda e avaliada pelo Departamento Anticorrupção do Ministério da Justiça.

Em 2007, quando Cristina chegou à Casa Rosada, esse capital tinha triplicado, chegando a US$ 4,5 milhões. Em dezembro de 2008, no auge da crise, havia dado um salto espetacular e, em apenas 12 meses, atingiu US$ 12,1 milhões.

Aprendam, capitalistas de meia-tigela, medíocres e grosseiros, tipo Bernard Madoff, que mereciam passar o resto de suas vidas na prisão por incompetência. Capitalistas de verdade são os Kirchners, audazes, engenhosos, criativos. Quando todos a sua volta perdiam o que tinham e não tinham, eles conseguiram fazer disparar suas receitas, demonstrando que o sistema tem recursos e atalhos para escapar das piores calamidades - e até prosperar com elas.

Como Néstor e Cristina conseguiram esse milagre? Quem trouxe a questão à tona em Buenos Aires foi a deputada oposicionista Patricia Bullrich, do Acordo Cívico e Social. Os dois, ambos advogados, já eram muito ricos quando ele assumiu a presidência da Argentina, em 2003. Possuíam 23 imóveis alugados.

Sem que isso os desviasse de suas responsabilidades políticas - Cristina era senadora e colaborava com o presidente em suas tarefas de governo -, esse patrimônio foi aumentando, por meio da compra, recuperação e venda de imóveis, e sagazes investimentos financeiros.

INTERESSES

Além de alugar algumas de suas propriedades para serem usadas como hotéis, eles fundaram, em sociedade com um de seus filhos, uma consultoria para assessorar seus clientes em "economia, finanças, direito, ciências sociais, educação, administração e outras especialidades". Como uma empresa de serviços como essa não teria um grande sucesso? Quem não gostaria de ser assessorado em seus negócios por esse casal de presidentes tão informado e próspero?

As operações tiveram como cenário a bela localidade de Calafate, na Patagônia. Uma paisagem divina, ar puríssimo e glaciares - o mais belo deles batizado de Perito Moreno, que nos remete às histórias de Jack London.

Pois bem, graças à generosidade do prefeito local, Néstor Méndez, os Kirchners compraram, em 2005, um terreno de 60 mil metros quadrados, pagando US$ 0,98 por metro quadrado. No ano seguinte, o revenderam por US$ 71 o metro quadrado. Assim, financiaram o belo hotel El Calafate.

Nesse mesmo ano, adquiriram outros 129 mil metros quadrados (também a US$ 0,98 o metro quadrado), que alguns meses depois revenderam por até US$ 81 o metro quadrado.

Em artigo publicado pelo jornal espanhol El Pais, Alejandro Rebossio cita uma declaração de Aníbal Fernández, chefe de gabinete da presidência, respondendo aos maliciosos que achavam que havia alguma coisa errada nessas formidáveis operações empresariais. "Ninguém que exerce o poder está impedido de ter um patrimônio pessoal, afinal essa é a essência do capitalismo."

Concordo plenamente com isso, é claro, e estou certo de que a ineficiente máfia russa - ineficiente porque, diferentemente dos Kirchners, parece ter perdido a metade dos incontáveis bilhões que possuía por causa da crise - deveria adotar essa filosofia e enfrentar o mundo sem complexos de inferioridade, proclamando que, fazendo o que fazem, não roubam, não contrabandeiam, não pirateiam, mas simplesmente mantêm viva a essência metafísica do capitalismo.

O mérito dos Kirchners é ainda maior se levarmos em conta o fato de que, a julgar pelos discursos com que costumam hipnotizar os eleitores, eles não apreciam o capitalismo. Mais ainda, são seus ferozes adversários.

Eles abominam o capitalismo porque o consideram explorador, egoísta, abusivo e corruptor. Seus verdadeiros amigos são pessoas como o presidente venezuelano, Hugo Chávez, ou seu colega nicaraguense, Daniel Ortega, com quem se confraternizam e prognosticam a próxima derrota do imperialismo.

Seus corações são de esquerda (somente seus bolsos e os vestidos de Cristina são de direita) e, por isso, durante seus dois governos, além de difamar os capitalistas, eles os obrigaram a passar por maus pedaços, nacionalizando empresas, oprimindo-os com novos impostos, a tal ponto que a fuga de capitais da Argentina, só no primeiro semestre deste ano, foi de US$ 11,2 bilhões.

Essas cifras foram fornecidas pelo Banco Central da Argentina, que também informou que, desde o início da crise, cerca de US$ 43,2 bilhões da poupança do país escaparam para o exterior ou foram escondidos em cofres de segurança ou embaixo do colchão.

RUÍNA

Ou seja, enquanto a empresa Kirchner fazia negócios lucrativos, o capitalismo desmoronava na Argentina e ganhava espaço essa peculiar filosofia do casal, segundo a qual não existe contradição alguma em exercer e se aproveitar de um sistema odioso e, ao mesmo tempo, trabalhar dentro do governo para sua extinção.

Talvez, essa seja a explicação da trama: o benemérito casal não enriqueceu por ganância, tampouco para dar uma lição ideológica a seu povo. Sua conduta respondeu a um propósito intrincado, semelhante a essas deslumbrantes e sutis construções intelectuais dos contos do seu compatriota Jorge Luis Borges.

Um propósito altruísta e pedagógico para mostrar, ao vivo, tudo o que de sujo e pestilento tem o sistema capitalista, que permite que um casal de políticos fique milionário em um prazo curtíssimo, apesar dos rigores e inseguranças por que passa seu país, quando milhões de argentinos empobrecem, os agricultores veem-se ameaçados, as empresas vão à falência e aqueles que procuraram poupar alguma coisa veem evaporar suas economias.

Heróis e mártires do capitalismo. Que belo casal!

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