Meu pai foi um mistério em minha vida; não nos comunicávamos bem... Ele era o perigo de castigos, o Supremo Tribunal que julgava meus erros. Por isso, ao escrever este artigo, sinto seu olhar por cima do meu ombro. Escrevo de novo sobre ele porque o filme que termino agora nasceu talvez de sua presença poderosa - eu, minha mãe, minha irmã girávamos em torno dele como satélites. Naquela época, o pai de família era a bússola de todos - viver era aceitá-lo ou contrariá-lo.
Eu sempre quis que ele me aprovasse, receber um elogio, um beijo espontâneo que nunca vinha. Ele parecia saber de algum crime que eu cometera, mas não dizia qual era. Eu sofria: "O que foi que eu fiz?" Meu pai ria pouco, como se o riso fosse um luxo, mas eu me empolgava quando ele chegava num avião de combate, coberto de dragonas douradas no uniforme da Aeronáutica, ele, meu herói que conquistara o pico do Papagaio como jovem alpinista e que fazia acrobacias de cabeça para baixo nos aviõezinhos do Correio Aéreo. Quando peguei coqueluche, ele me levou num bi-motor a 4.000 metros de altura, pois diziam que isso curava a tosse renitente. O avião subiu com meu pai pilotando, um sargento e minha mãe num casaco de pele, com o cabelo preso num coque alto chamado "bomba atômica", cruel homenagem da moda à destruição de Hiroshima. De repente, a porta do avião se abriu a 4.000 metros e eu teria sido chupado para fora, não fosse a rápida ação do sargento.
Até hoje, não sei se isso realmente aconteceu, pois meu pai sempre me causava fantasias de extinção. Ele era um árabe alto, nariz de águia, bigodinho ralo, cabelo reluzente de Glostora, óculos Ray-Ban, sapatos de borracha Clark, da Casa Polar.
Hoje, entendo que ele queria fazer de mim um homem - a severidade ocultando o amor. Sei agora que ele queria dar-me exemplos de espartana resistência, de chorar sem lágrimas. Claro que virei artista, por formação reativa, claro que, quando ele me deu um livro (nunca aberto) sobre mineração de carvão, eu ia ler Rimbaud e escrever poesias. Com minha mãe superprotetora, se eu bobeasse, hoje estaria cantando boleros, "drag queen" com o codinome Neide Suely.
Minha vida se organizou para ser tudo o que ele não era - uma maneira de obedecê-lo em revolta. Ele era moralista? Eu defendia sacanagens e palavrões. Ele era da UDN? Entrei para o PCB aos 18 anos.
Então, comecei a despertá-lo da letargia desatenta a mim, provocando-o, esculhambando norte-americanos e militares, culpando a Aeronáutica pelo suicídio do Getúlio. Aí, conseguia berros à mesa de jantar, com minha mãe pálida, sussurrando: "Olha os vizinhos!"
Queriam-me diplomata? Ah... hoje eu poderia ser um pobre itamarateca alcoólatra... Fui ser nada, maluco, comuna na UNE; depois, por acaso, acabei cineasta... O tempo foi passando. Papai aposentou-se cedo demais e aquele projeto de "picos do Papagaio", de aviões em parafusos, de um heroísmo guerreiro virou um silêncio aterrador no apartamentozinho de Copacabana, onde o tempo parecia parar. Entre as poltronas dos anos 40, entre os vasos de flores de minha mãe, a presença de meu pai era quase abstrata, vendo TV de tarde, de pijama, em meio a minhas visitas, quando eu tentava alguma coisa que mudasse aquela paralítica tragédia, aquele relógio do avô que batia o pêndulo em vão.
Todos os dias eram iguais; só minha mãe mudava, cada vez mais perto da senilidade, visitando a médium "linha branca" que lhe dava conselhos com voz grossa de caboclo. Eu queria que alguma coisa acontecesse, queria vê-los dentro da vida da cidade, mas só saíam para comer num sinistro restaurante "a quilo", de fórmica rosa e amarela.
Um dia, nasceu-me a primeira filha. Foi um momento de vida e luz, mas, logo depois, meu pai caiu doente, com uma enigmática infecção pulmonar, que não passava. Médicos se sucediam: tuberculose, enfisema? O quê? Foi uma revolução cultural no apartamentozinho de Copacabana: aquele rei silencioso estava caído no divã, cuspilhando, febre permanente, precisando de ajuda. Então, a força estava fraca? O pai virara filho? Minha mãe pirou mais ainda, sem saber lidar com tanto poder que ganhara, tanta liberdade súbita. Eu também estranhava aquele titã caído. Um dia, o médico decretou: "Está muito anêmico... Precisa de transfusão de sangue".
Fui levá-lo à Casa de Saúde São José, onde minha primeira filha tinha nascido, pouco antes.
Deixei meu pai na cama de um quarto, com a bolsa de sangue pingando-lhe nas veias e, para evitar o silêncio triste da lenta transfusão, saí pelos corredores, para dar uma volta sem rumo.
De repente, ouço dois tiros. Sim, dois tiros de revólver.
E foi aí que minha vida começou a mudar. Pela porta do quarto ao lado, olho e vejo dois homens caídos no chão branco de fórmica, boiando em duas imensas poças de sangue. Um já estava morto e o outro agonizava de boca aberta, emitindo um soluço com um assobio assustador, como um peixe morrendo fora d’água. Enfermeiros acorreram e eu soube que tinha sido um crime passional.
Um médico matara o outro e suicidara-se em seguida. Nada mais fora de lugar que um assassinato no hospital.
Tudo se juntava, meus fantasmas acorriam todos, num clímax de vida e morte. Vi, espantado, que um deles era o ginecologista que tratava de minha mãe e que estava ali, boiando no próprio sangue, no hospital onde acabara de nascer a minha filha. A transfusão acabou, as ambulâncias levaram os corpos e ficamos, eu e meu pai, assustados, sozinhos ali no quarto. O mundo tinha mudado.
Então, não sei por que, comecei a sentir um imenso carinho por meu pai, ali, fraquinho, cabelo branco. Ajudei-o a se arrumar, fechei-lhe o paletó e voltamos para casa, como cúmplices mudos de um crime, de um jorro de morte que destruiu nossa melancolia e nos uniu de uma forma misteriosa.
Nunca entendi bem o que aconteceu - só sei que não houve mais silêncios tristes entre nós dois.
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