Parasitismo
O GLOBO - 27/04/09
Com a queda esperada para as taxas básicas de juros esta semana, a economia brasileira começa a entrar em nova fase, mais por questões estruturais do que conjunturais. A redução dos juros abaixo de um patamar de 10% forçará o sistema financeiro nacional – que, como vimos nesta crise internacional, é o centro nervoso de qualquer economia – a sair do parasitismo.
O sistema financeiro no Brasil não precisava se esforçar muito para buscar rentabilidade na administração de seus próprios recursos e de terceiros porque podia se escorar nos juros anômalos que têm sido pagos pela dívida pública.
É uma receita dita e certa, que estabelece os parâmetros de rendimentos também para os papéis privados. Assim, os bancos atrofiaram os seus departamentos de crédito, que não têm desenvoltura e nem experiência suficientes para emprestar em larga escala. Devido a essa inexperiência, as instituições estão sempre às voltas com o fantasma da inadimplência, e, por isso, acabam exagerando nas exigências de garantia e nos “spreads” cobrados dos clientes.
Dessa forma, o sistema financeiro brasileiro se tornou ineficiente no que se refere ao cumprimento de sua principal função social e econômica, que é a de intermediar a circulação de recursos entre os diferentes e variados setores. O sistema passou a operar essencialmente para financiar o setor público, cuja dívida se tornou um fim em si mesmo, já que muito pouco dos recursos captados no mercado é direcionado para investimentos (essa montanha de dinheiro é usada para rolar o principal e uma parte dos juros). Então, quanto mais rápido nos livrarmos dela, melhor.
Tanto instituições privadas como estatais públicas sofrem hoje do mesmo mal. E desse modo, sem ter para onde correr, o cliente que necessita de crédito se sujeita ao pagamento de juros escorchantes, assumindo, quase sempre, riscos demasiados – não pelo próprio negócio, mas pela asfixia decorrente dos encargos financeiros elevados.
Tal ineficiência que se incrustou no sistema financeiro se refletiu também na prestação de serviços. Os bancos cobram os tubos para prestar serviços rotineiros de atendimento às empresas e aos cidadãos, a ponto de as tarifas recebidas cobrirem totalmente suas folhas de pagamento e despesas administrativas.
A raiz de toda essa “ineficiência estrutural” é o parasitismo alimentado pelas taxas básicas de juros excessivamente altas que o Brasil teve de adotar enquanto não resolvia seus desequilíbrios econômicos crônicos.
Por motivos conjunturais (pressões sobre a inflação causadas pela insuficiência de investimentos na capacidade produtiva do país), os juros básicos aqui não se nivelaram aos padrões do mercado internacional. Somente agora com a crise, depois que o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu, surgiram condições para cortes expressivos nessas taxas, existindo a possibilidade de caírem para menos de 10% em 2009.
Ainda que o Comitê de Política Monetária (Copom) resolva, na quarta-feira, reduzir os juros em 1,5 ponto porcentual – ou em 1 ponto, como espera a maioria dos analistas financeiros – as taxas básicas permanecerão bem acima da média mundial. Mas já em patamar que obrigará o sistema financeiro a buscar eficiência na sua razão de ser, abandonando o parasitismo.
E quando tivermos um sistema financeiro efetivamente eficiente, a economia brasileira como um todo poderá dar grandes saltos de produtividade. Ou seja, a médio prazo, a queda dos juros será muito boa também para os bancos, que colherão os frutos por estarem inseridos em uma economia mais dinâmica.
O Banco Central às vezes vacila e deixa passar algumas oportunidades para pequenos ajustes, mas não é o principal responsável por essa situação. Desequilíbrios crônicos da economia brasileira foram o pano de fundo, e corrigi-los exige tempo. Além de enorme paciência. No entanto, agora a queda dos juros pode acelerar esse processo.
Desta vez sob patrocínio da Bovespa/BMF, sairá do prelo o livro que Ney Carvalho relata A guerra das privatizações. Ney passou grande parte de sua vida profissional na corretora de valores da família dele, mas hoje se dedica inteiramente a estudos históricos sobre a economia do país. Escreveu, por exemplo, um livro interessante sobre a grande especulação financeira ocorrida no início da República, episódio conhecido como “o encilhamento”.
Na introdução do novo livro há uma citação curiosa sobre os primórdios da presença do estado na atividade produtiva: dois meses após chegar ao Brasil, em 1808, o príncipe regente D. João fundou a primeira indústria, como monopólio estatal, para fabricar baralhos. E cinco anos depois já mandava distribuir “privilégios, faculdades e isenções”, ou seja, benefícios, para os empregados da “fábrica de cartas de jogar desta Corte”. Também em 1808, D. João incumbiu o intendente Câmara (cujo nome batiza a principal usina da Usiminas) de instalar uma fábrica de ferro em Minas Gerais. Por causa dos prejuízos acumulados, a fábrica fechou em 1831 e todos seus bens vendidos a particulares, “em estado miserável”.
A leitura de A guerra das privatizações deve ressuscitar polêmicas exatamente nesse momento que o estado volta a surgir como figura salvadora diante da grave crise financeira internacional.
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