Raspa do tacho
O ESTADO DE SÃO PAULO - 25/04/09
Estejam de serviço no Legislativo ou no Executivo, políticos gostam de invocar a defesa da democracia quando se sentem acuados por denúncias, notadamente se irrespondíveis.
Em determinada altura de qualquer escândalo lançam dúvidas sobre o que “há por trás” das notícias. Acusam a imprensa de prejudicar a democracia, mas não se perguntam o que eles têm feito para o aperfeiçoamento do sistema nem refletem sobre as razões da crescente desmoralização da atividade política.
Bem ou mal, com erros e acertos, avanços e tropeços, os meios de comunicação têm cumprido sua parte no contrato firmado quando da redemocratização que devolveu ao País o direito básico à informação.
O mesmo trato tornou obrigatório o respeito à Constituição que preconiza de forma cristalina os constantemente ignorados princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade e da publicidade na administração pública.
Portanto, se tem alguém flertando com o descaso à democracia é a parte que rompe o pacto. E cabe a ela, se o mínimo de apreço genuíno dispensa ao regime das liberdades, do contraditório, da representação popular e do Estado de Direito, rever procedimentos e retomar o compromisso.
Diante dessa questão estão todos os Poderes. Mas a Câmara, em particular, está bem próxima de uma oportunidade de começar o processo de regeneração.
É na próxima terça-feira, quando o plenário deverá votar as medidas restritivas ao uso das passagens aéreas: proibição de emissão de bilhetes para terceiros, redução de 20% no valor das cotas, fim da acumulação de créditos, divulgação dos gastos na internet e autorização de voos internacionais só para viagens de trabalho.
O presidente da Câmara, a maioria da Mesa Diretora, alguns líderes de bancadas e algumas dezenas de deputados já compreenderam que a batalha da opinião pública está perdida. Sentiram também a força da reação interna e perceberam que se forem vencidos por ela a perda será irrecuperável.
A votação de terça-feira é simbólica e importante porque representa a última oportunidade de os deputados começarem a tirar a Câmara do fundo do poço. Se o projeto for rejeitado ou alterado de forma a assegurar a manutenção de práticas de favorecimento indevido, a Casa terá queimado a raspa do tacho do pouco crédito que lhe resta.
Ficará no osso, exposta ao sol e ao sereno. Indefensável. A cúpula (chamemos assim todos os que compartilham dessa compreensão), desta vez tentará de todos os meios e modos evitar o desastre. Inclusive porque são os parlamentares mais expostos ao escrutínio da opinião pública os que têm mais a perder, a começar pelo presidente Michel Temer.
Só que a contrapressão de quem ou já não tem nome algum a zelar ou prefere perder a reputação a abrir mão de privilégios não é de forma alguma desprezível. Prova disso deu-se durante a semana, quando a Mesa decidiu baixar as restrições por ato normativo e, recebida com agressividade pelo plenário, foi obrigada a levar as medidas à votação.
Essa maioria, evidentemente, não está disposta a concordar com os limites e tentará apresentar emendas ao projeto de resolução a fim de deixar brechas que pelo menos autorizem o repasse de passagens a familiares mais próximos.
Prevalecendo o conceito da “sagrada família”, a situação permanecerá a mesma de antes. Maquiada, porém inalterada no que tange ao princípio da impessoalidade na administração pública.
Todas as outras restrições perdem a validade. Esse tipo de coisa ou se faz para valer ou não se faz. Se tentar embromar, acomodar interesses, ceder a este ou àquele argumento individual, a Câmara estará liquidada em sua já reduzida credibilidade.
Estará dizendo mais uma vez à sociedade que as regras que valem para o cidadão que elege não valem para o eleito. Estará informando ao público que na obrigatoriedade do voto se inclui a obrigação de administrar o bem-estar pessoal/familiar do parlamentar. É demais.
Já bastam as anistias em série concedidas a todas as transgressões cometidas, um evidente abuso do poder de legislar pela instituição da impunidade em causa própria.
CASA DE FERREIRO
Por intermédio do ministro das Relações Institucionais, o presidente Luiz Inácio da Silva falou pouco, mas falou bem quando pediu o fim da farra das passagens no Congresso “porque o cidadão comum não tem como compreender, por mais que existam explicações”.
Estaria mais bem posicionado na condição de porta-voz da cobrança se cobrasse também o acerto de várias contas em aberto do Poder Executivo no quesito probidade. Da conclusão do inquérito de Waldomiro Diniz, à autoria do grampo no telefone do presidente do Supremo, passando pela origem do dinheiro da compra de dossiê eleitoral e, claro, pela formação da maioria parlamentar sob critérios bastante representativos “disso tudo que está aí”.
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