sábado, abril 11, 2020

Páscoa! Ovo em cloroquina! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 11/04

Bolsonaro tá comprando chocolate em barra porque a Terra é plana


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Quarentena: “Nada como chegar ao quarto depois de passar o dia na sala!”. E os meus sapatos pensam que já morri! Rarará!

E tenho um primo que passa o dia esperando as testemunhas de Jeová para conversar. Ele que aluga as testemunhas. E hoje é a Páscoa da Pandemia! E diz que o Bolsonaro está comprando chocolate em barra porque a Terra é plana! Rarará!

E se ovo de Páscoa simboliza a vida, pelo preço deve simbolizar a vida do Silvio Santos! E nesta Páscoa eu aceito chocolate, álcool em gel e Rivotril! Rarará!


E corre na internet a foto das gêmeas Trump e Bozo: Cloro e Quina! Rarará! E o pronunciamento do Jair Cloroquina: “Na Páscoa farei distribuição de ovo com cloroquina, OVOQUINA! E se não tomar, o PT volta!”.

Breaking News! “Presidente da Câmara de Guanambi diz que o coronavírus é um inseto que vem de outro planeta.” Discos voadores desceram em Wuhan e um chinês comeu um ET! Um verdinho de olho arregalado!

“Pandas aproveitam o zoológico vazio e se acasalam pela primeira vez em dez anos.” Então não era preguiça, era falta de privacidade. Isso que é “pandemia”! Que inveja! Agora não pode nem aperto de mão!

TV Maresol: “Tigre do zoológico de Nova York contraiu coronavirus porque é idoso: tigre de bengala”. Rarará!

Governo lança o jingle da cloroquina: “ Cloroquina, cloroquina/ Cloroquina eu tomei/ E o povo como fica?/ Fica tudo tá ok”. O Bolsonaro quer o povo na rua: “ Vou para a rua, se pegar a gripezinha já tem remédio, a cloroquina”. Que sumiu das farmácias. O povo comprando adoidado! Por isso que o David Uip não diz se tomou, é responsabilidade.

E o bafo da semana: Mandetta x Capeta! E sabe o que o Mandetta cantou para o Bolsonaro? “Caneta azul, azul caneta, para enfiar na rabeta.” E, com o caso Mandetta, a hierarquia foi restabelecida: os generais mandam e o capitão obedece! Rarará!

E as quarentenas dos tuiteiros! Tuiteiro prontofalei: “Acho que esqueci o caminho da padaria. Em compensação, sei que tenho 12 facas, 16 garfos, 13 colheres, 11 copos, cinco canecas e 17 toalhas de rosto”.

E a senhora Rivotril: “Hoje vou sair de casa. É a minha vez de tirar o lixo. Que emoção. Nem sei que roupa usar”. Usa a sua melhor: um longo de lamê! Moletom nem pensar! Moletom só à noite pra maratonar série na Netflix! E uma amiga virou sócia do Rappi.

Nós sofre, mas nós goza. Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!


José Simão
Jornalista, precursor do humor jornalístico.

Carta ao Leitor: O radicalismo em xeque

REVISTA VEJAedição nº 2682
Se há um ensinamento que o coronavírus deixará para os políticos é este: a perda de vidas humanas não suporta irresponsabilidades nem descaso com a ciência


Entre os incontáveis — e muitas vezes devastadores — impactos da pandemia de Covid-19, o que se faz notar no âmbito da política é, paradoxalmente, positivo. Trata-se do abalo sísmico que o novo coronavírus vem provocando nos alicerces do radicalismo. O termo, que designa um movimento de ideias cujas raízes históricas se encontram na Europa da virada do século XVIII para o XIX, embute em suas características o descarte de propostas contemporizadoras na condução dos variados aspectos da vida social. A repulsa à negociação aproxima perigosamente o radicalismo do extremismo político que, em diversas oportunidades, provocou algumas das grandes tragédias da história da humanidade (nazismo, fascismo, comunismo…).

Radical, e frequentemente extremista, como se sabe, é o chamado “gabinete do ódio”, que assombra o governo de Jair Bolsonaro, tendo no presidente mesmo seu maior fiador. Com o objetivo de alimentar o confronto, e não o entendimento — marco de sua trajetória, não é de hoje —, o chefe do Executivo cria, de modo reiterado, obstáculos para o próprio governo, incluindo seus colaboradores mais competentes e equilibrados. E, para tanto, Bolsonaro não hesita em dar vez e voz a toda sorte de impropriedades (muitas delas baseadas em informações 100% falsas ou apenas parcialmente verdadeiras).

Não tem sido outra sua conduta diante do surto epidêmico que varre o planeta e que chegou ao Brasil nos derradeiros dias de fevereiro. Contra tudo e todos — exceto seus mais radicais seguidores, do mundo real ou virtual —, o presidente fez questão de desdenhar da letalidade do novo coronavírus, das quarentenas para tentar reduzir a velocidade de propagação da doença, dos cuidados que ainda devem ser tomados em relação à cloroquina no tratamento da Covid-19. Também atacou governadores, a imprensa, o ministro da Saúde, a OMS. Quando recuou, ele o fez de modo acanhado ou recorrendo ao apelo religioso. No domingo 5, por exemplo, Bolsonaro participou de uma roda de oração pelo fim da pandemia em frente ao Alvorada e, de joelhos, ouviu com fervor estas palavras do sacerdote: “Em nome de Jesus, eu quero declarar que no Brasil não haverá mais morte pelo coronavírus”. Naquele dia, o país contabilizava 486 vidas perdidas. No começo da noite da quarta-feira 8, já eram 800.

Assim, uma a uma as posições defendidas pelo chefe do Executivo vão sendo derrubadas pela Covid-19, uma inimiga que Bolsonaro não pode acusar de falsear a verdade. Não é de estranhar que o presidente apareça hoje abaixo dos governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) — favoráveis, por exemplo, ao recurso do distanciamento social — na avaliação de desempenho no combate à pandemia. Em pesquisa realizada pelo Datafolha, Bolsonaro surge com 33% de aprovação, enquanto Doria tem 51% e Witzel, 55%. Seu ministro da Saúde, que vem inteligentemente pautando suas decisões fundamentado em fatos, está com 76%.

Evidentemente, o preço que se está pagando para que o radicalismo seja levado às cordas é alto, altíssimo — a morte de tantas pessoas. Mas se há um ensinamento que o novo coronavírus deixará para os políticos é este: a perda de vidas humanas não suporta irresponsabilidades nem descaso com a ciência — tampouco com a verdade. Ainda é cedo para sabermos se essa lição vai finalmente interromper a dinâmica do ódio, da manipulação da verdade e do obscurantismo que dominou a cena política nos últimos anos. Mas, como mostra a reportagem que começa na página 28, os primeiros sinais evidenciam que talvez esse seja um dos poucos legados favoráveis destes dias tão sombrios.

Jim Jones tupiniquim - MERVAL PEREIRA

O Globo - 11/04

Bolsonaro será responsabilizado pessoalmente pelo aumento das mortes. Não é possível ter um presidente que estimula a população a se arriscar numa pandemia



O presidente Jair Bolsonaro está cavando um abismo a seus pés lutando contra a realidade trágica da Covid-19. Não há saída honrosa para ele diante da perspectiva de recessão econômica - o ministro da Economia Paulo Guedes já teme um PIB negativo de 4%, há bancos prevendo até 6% - e de um dramático número de mortes, que já está na casa do milhar antes de um mês de quarentena.

As demonstrações diárias de irresponsabilidade acintosa vão ganhando perigosos ares de desequilíbrio comportamental que, em vez de aumentar suas chances de concorrer à reeleição, vão lhe retirando essa possibilidade, reduzindo seu apoio a um grupo de fanáticos.

A mais recente pesquisa DataFolha mostra que 17% dos eleitores que votaram em Bolsonaro no segundo turno estão arrependidos, o que quer dizer que cerca de 10 milhões de pessoas o abandonaram, fazendo com que tivesse hoje, teoricamente, menos votos do que obteve no primeiro turno.

Não quer dizer, porém, que todos os que não se declararam arrependidos estejam contentes com o governo Bolsonaro. Muitos, certamente, não se arrependeram porque consideram que o principal papel de seu voto foi derrotar o PT.

Pesquisas de opinião pública mostram que Bolsonaro mantém um apoio em torno de 30% da população, o mesmo índice que o PT costumava ter antes de chegar ao poder, igual ao percentual de votos que o candidato petista Fernando Haddad obteve no primeiro turno.

Não há indicações de que o PT tenha mantido seu nível de apoio de lá para cá, e o desgaste de Bolsonaro é nítido. Por isso a polarização contra o PT é bom, teoricamente, para os dois, mas especialmente para Bolsonaro se ele já não tivesse provado que não é apenas um antipetista, mas um desequilibrado, técnica e emocionalmente incapaz de enfrentar crises como a que atravessamos, e moralmente corrupto.

Não acredito que o PT tenha, nesses anos recentes, recuperado a imagem de honestidade e credibilidade que conseguiu introjetar no eleitorado, e acho, portanto, que uma repetição da polarização dificilmente acontecerá. Os extremos já se mostraram incapazes de dar uma solução para o país.

O desgaste de Bolsonaro só se acentuará nos próximos anos, já que ele é incapaz de ser outra pessoa. Já era assim antes da campanha, mas era o que tinham os que queriam alijar o PT. O centro político foi incapaz de apresentar uma alternativa ao eleitor de centro-direita que demonstrasse viabilidade eleitoral, diante da radicalização que tomou conta da eleição.

Abre-se um caminho largo até 2022 para candidatos de centro se firmarem no cenário político nacional, e os governadores, que são protagonistas dessa guerra contra a Covid-19, podem colher resultados positivos, como já demonstram as pesquisas de opinião e as redes sociais. Por isso, a cada vez que surge um político que se destaque, passa a ser potencial candidato a presidente: é assim com Mandetta, é assim com Moro.

O comportamento do presidente Bolsonaro, ao sair às ruas em Brasília, é acintoso, atitude que não pode ser vista como normal. Por causa desse comportamento, nossa política de isolamento social está começando a afrouxar, a ser rompida por grupos incentivados pelo presidente.

Não é assim que a economia vai melhorar, e esse afrouxamento provocará mais mortes, mais sofrimento. Não é à toa que a embaixada alemã está recomendando a seus cidadãos que regressem ao seu país.

Bolsonaro será responsabilizado pessoalmente pelo aumento das mortes. Não é possível ter um presidente que estimula a população a se arriscar numa pandemia, como um líder místico levando seus seguidores para o suicídio coletivo. Bolsonaro, nosso Jim Jones tupiniquim, será o PT da próxima eleição, aquele a quem será preciso afastar do poder.

Os 30 dias que abalaram o Brasil - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 11/04

No dia em que o Brasil atravessou a linha de mil mortos por Covid-19, o presidente exibiu a mesma atitude irresponsável que tem tido desde o começo da crise



Quando o Brasil atravessou ontem a fronteira dos mil mortos por Covid-19 o presidente Jair Bolsonaro saiu para passear novamente. Foi a uma padaria, a uma farmácia, passou pelo Hospital das Forças Armadas onde, disse aos jornalistas, foi fazer teste de gravidez. Ele é coerente. Tem tratado a pandemia com a displicência de sempre. Seus atos e palavras nos últimos trinta dias mostram a constância da mensagem contra o isolamento social e as recomendações das autoridades de saúde.

No dia 10 de março, na viagem aos Estados Unidos, para uma plateia de empresários, Bolsonaro disse “a questão do coronavírus não é isso tudo isso que a grande mídia propaga” e que muito era “fantasia”. Na volta descobriu-se que na comitiva havia 23 infectados. No domingo, dia 15, ele foi à manifestação contra o Congresso e o Supremo, cumprimentou inúmeros manifestantes, desprezando os cuidados para prevenir o contágio. O comportamento mostrava desprezo às orientações médicas, e o ato era um desprezo à democracia. Ele compartilhou vídeos de manifestantes de várias partes do Brasil exibindo faixas que não deixavam dúvidas sobre a natureza antidemocrática das mensagens.

No dia 17 houve a primeira morte confirmada por coronavírus, Rio de Janeiro e São Paulo decretaram emergência. E ele: “A economia estava indo bem, mas esse vírus trouxe alguma histeria. Existem alguns governadores que estão tomando medidas que vão prejudicar nossa economia”. No dia seguinte, ele disse que não haveria colapso na saúde e chamou o governador João Dória de “lunático”. Defendeu a cloroquina que deveria, segundo prescreveu, ser distribuída para todos os infectados. Depois em um pronunciamento no dia 19 ele pediu o fim do confinamento, acusou governadores de histeria, pediu a volta das aulas porque “raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos” e completou: “pelo meu histórico de atleta, caso eu fosse infectado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria acometido de uma gripezinha, um resfriadinho”. Uma fala reveladora de que ele não pensa no que pode acontecer ao país, mas apenas com ele mesmo.

Bolsonaro mostrou nesse um mês — do dia 10 de março ao dia 10 de abril — várias vezes, desprezo pela vida humana. No dia 26, ao chegar no Alvorada, debochou: “o brasileiro tem que ser estudado, ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha tá certo?”. No dia seguinte disse “algumas mortes terão, paciência”. E depois, em entrevista ao José Luiz Datena, “alguns vão morrer? Vão, ué. Essa é a vida”. Em seguida, no dia 30, no mesmo trôpego linguajar, “vocês acham que gente morrerão? Vai morrer gente”.

No dia 31 ele voltou à televisão para outro pronunciamento e alguns se iludiram com uma suposta mudança de tom. Houve aqui e ali alguma frase que refletia a realidade, como a de que “esse é o maior desafio da nossa geração”. Foram trechos inseridos pelos conselheiros militares do presidente que passaram o dia tentando salvar o pronunciamento que pela manhã ele prometera fazer. Seu objetivo era distorcer as palavras do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde.

No dia primeiro de abril, em mais um ato da sua campanha de acusar os governadores pela crise econômica, ele postou um vídeo que transmitia uma informação falsa de desabastecimento na Ceasa de Belo Horizonte. No mesmo dia, comparou o coronavírus à chuva. “Você vai se molhar, mas não vai morrer afogado”.

Depois de tantas palavras de menosprezo à vida, é difícil acreditar na sinceridade do que ele disse em novo pronunciamento esta semana, quando se solidarizou com as famílias das vítimas. De novo, o objetivo era defender a cloroquina, usando o argumento de que o médico Roberto Kalil a usara.

Durante todo esse mês ele fritou em público o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, desautorizando diariamente tudo o que ele recomenda e todos os alertas que ele faz.

Nesse mês em que o Brasil entrou em espiral de infectados e mortos e se assusta com a dimensão ainda desconhecida da pandemia, tudo o que o presidente da República fez foi brigar com governadores, minar seu ministro, ficar de picuinhas, receitar remédio duvidoso. Na crise, Bolsonaro provou que não sabe exercer o cargo de presidente da República.

11.04.01 d.c. - SÉRGIO AUGUSTO

O Estado de S.Paulo - 11/04

Quem chegar vivo ao final da pestilência poderá testemunhar a morte da austeridade econômica


Falar do quê?, eis a questão. De coisas sérias, consequentes, duras, quiçá úteis e até edificantes ou adoçar a boca do leitor com o mel de fait divers escapistas? Remoer a deprimente arenga sanitária martelada ininterruptamente pela TV ou buscar um ponto de fuga lenitivo e psicologicamente profilático?

Sintetizando a questão em dois filmes sobre enfrentamento ao nazismo: vamos de Kanal ou de A Noviça Rebelde?

(Kanal, informo a leigos e desmemoriados, é um filme tenebroso do polonês Andrzej Wajda, sobre a resistência de seus patrícios à invasão nazista. É quase todo ambientado nos esgotos de Varsóvia. Já a fuga da família Trapp, como até as vacas do Tirol sabem, deu-se através das verdejantes colinas de Salzburgo.)

Como as colinas pós-pandêmicas tão cedo não irão revivescer ao som da música, kanalizemos nossa pauta. Ao esgoto, moçada.

Quem chegar vivo ao final da pestilência em curso poderá testemunhar algo que até recentemente parecia ainda um tanto longínquo, embora visível no horizonte: a morte da agenda de austeridade econômica, a vítima mais alvissareira do novo coronavírus.

Mas não se empolguem. A dívida pública de todos os países deverá atingir níveis assustadores, as economias mais frágeis, esse eterno grupo de risco, verão suas desigualdades aumentarem.

Pelos depoimentos que tenho lido, já é quase consenso que aquele mundo que até algumas semanas atrás desfrutávamos, com menos e mais dificuldades, algumas superáveis, deixou de existir. Desapareceu. E não mais voltará.

A nostalgia encurtou seus prazos; saudade não tem mais idade. Neste primeiro ano da Era Coronavírus, Ano 1 d.c., até crianças já suspiram pelo carnaval de 2020. Ou pelo Natal de 2019.

Sinto-me como se tivesse mudado para outro planeta, cujos habitantes não se interagem, não se confraternizam, não se tocam, onde todos desconfiam e se repelem mutuamente. Até quando seremos (ou nos sentiremos) todos leprosos?

Vejo fotos e filmes em que as pessoas conversam, cumprimentam-se, abraçam-se e dividem a mesma mesa ou o mesmo sofá, e, do alto (no meu caso, nove andares) da minha também pobre experiência quarentenal, me pergunto: qual mundo nos é mais estranho, este que estamos vivenciando ou aquele que, para o nosso bem, teremos de esquecer?

Nunca pensei que um dia fosse experimentar na vida real o que tão marcadamente me intrigou ao ver, em criança, O Dia em que a Terra Parou, a versão original, dirigida por Robert Wise. Como seria se nosso planeta fosse, como no filme, inteiramente paralisado por uma força superior, no caso, a mente de um ET benigno, chamado Klaatu? Todos os aparelhos elétricos são súbita e misteriosamente desligados, exceto os de hospitais e aviões em voo, resultando num breve mas incisivo apagão global, para que os terráqueos aprendam a viver em harmonia, em paz permanente. Não aprendemos.

A espaçonave que até nós trazia Klaatu e seu fiel robô Gort aterrissava em Washington, e como em 1951 a Guerra Fria já estava amornando, tomaram-na por um disco voador soviético, despachado do Kremlin para destruir a América e o resto do Ocidente. As xenófobas imputações feitas à China, nas últimas semanas, por conta do novo coronavírus, aqui e lá fora, seguiram portanto um padrão de idiotia paranoica e anticomunismo fuleiro coberto de mofo.

A covid-19 é um Klaatu em forma de microrganismo; quem sabe não iremos tirar proveitosas lições de sua disseminação. Já aprendemos a revalorizar a solidariedade, o papel da imprensa e o heroico SUS; pouca coisa não foi. Mas ainda é pouco.

Das mil e uma ideias implementadas para amenizar o claustro pandêmico e desentediar a mídia impressa, uma das mais fagueiras foi a série Janelas Para o Mundo que um consórcio de jornais europeus, encabeçado pelo alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung e o italiano Corriere della Sera, bolou com a participação de escritores e filósofos europeus. Cada convidado conta o que tem visto de sua janela ou nela tem corvejado sobre a vida, os últimos acontecimentos e o que mais lhe aprouver.

Residente em Milão, Antonio Scurati, o festejado autor da mais recente biografia de Mussolini, M, o Filho do Século, testemunha de sua finestra o que ele define como o fim de uma era, “a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da humanidade”. É com tristeza e uma pitada de ironia que ele acompanha e narra a transformação da cidade mais rica, privilegiada e evoluída da Itália, polo mundial da moda e do design, em capital mundial da contaminação virótica.

Pouco importa que Nova York já a tenha ultrapassado nesse ranking sinistro. Scurati não mora em Manhattan, é milanês adotivo. A Milão que ele descreve – com seus ricaços fazendo fila para comprar um pão ordinário na mercearia de imigrantes que antes olhavam com desprezo, mas hoje é a única em funcionamento nas vizinhanças – me pareceu a que vimos em A Noite, de Antonioni, metamorfoseando-se na proletária periferia que De Sica retratou em Milagre em Milão.

A um metro de distância um dos outros, “ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados”, os ricaços na fila do pão formam uma felliniana farândola de mascarados. Suas improvisadas máscaras em nada lembram as dos carnavais venezianos. São precárias gazes meio desfiadas, que pendem de rostos transtornados pela “melancolia mole dos restos de uma era acabada”, arremata Scurati.

Da minha janela eu ainda vejo o Corcovado e o Redentor, que lindo. É um consolo. Boa sorte a todos.

Cortando na carne (alheia) - FÁBIO FABRINI

Folha de S. Paulo - 11/04

Presidente se esqueceu de si próprio e de seus ministros


Jair Bolsonaro foi ligeiro ao atender empresários e autorizar cortes salariais de até 100% na iniciativa privada. Tragédia posta para o trabalhador cuja renda despencará, mas pior seria a demissão.

Ao repartir entre os brasileiros o pão que o diabo amassou na crise sanitária, o presidente se esqueceu de si próprio e de seus ministros.

Por ora, nenhum deles se propôs, ao menos publicamente, a abrir mão de um mísero naco dos rendimentos obtidos da Viúva.

Continuam pingando em suas contas os mesmos R$ 30,9 mil mensais dos tempos de normalidade, fora penduricalhos obscenos como o auxílio-moradia.

O pacote de sacrifícios de Bolsonaro preserva a própria casta e toda a cúpula do funcionalismo, habituadas a receber primeiro as graças do Estado e a delas nunca desapegar.

A redução salarial nos andares de cima teria impacto fiscal diminuto, mas significativa simbologia quando o grosso da população está em apuro financeiro e o rombo nas contas públicas se amplifica.

Em outros países, o senso de autopreservação ficou de lado. No Uruguai, por exemplo, Lacalle Pou anunciou redução de 20% do que ganham ele próprio e seus pares.

Aqui, o corte é um desafio não só pela inércia política, mas porque a Constituição prevê a irredutibilidade dos salários do funcionalismo.

Essa proteção se aplica a esses ganhos em especial, mas não necessariamente vale para ajudas de custo, adicionais, gratificações, honorários e outros balangandãs que servem para aumentar os zeros nos contracheques e fazem do teto salarial uma fábula.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, aventou projeto para morder um quinto dos salários de quem ganha mais nos Três Poderes, mas recuou ao buscar a adesão do Judiciário e receber um Supremo não.

Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, permanecem silentes a respeito, enquanto imolam direitos"¦ dos outros.

A guerra da cloroquina - DEMÉTRIO MAGNOLI

Folha de S. Paulo - 11/04

Fanáticos tolos enxergam a cloroquina como pote de ouro no fim do arco-íris


Todos os médicos podem prescrever a cloroquina para seus pacientes, com autorização deles. O Ministério da Saúde não veta o uso da substância --e também não a receita, pois, como em qualquer outro caso, não é sua função substituir o médico.

O ministério não estimula o uso indiscriminado da droga porque não se concluiu o protocolo científico de sua aprovação como medicamento para a Covid-19. Ao lado dela, pesquisas em fase inicial descortinam outras hipóteses medicamentosas prometedoras. Tudo isso parece óbvio, exceto para os fanáticos da cloroquina, que deflagraram uma "guerra cultural".

À primeira vista, a guerra decorre da sedução do pensamento mágico. Os fanáticos da cloroquina a enxergam como cura divina, o santo graal, elixir da vida, um pote de ouro no fim do arco-íris. Mas esses são os fanáticos tolos, inocentes úteis, soldados rasos de uma guerra cujas raízes não compreendem.

Os alquimistas da nova jihad transfiguram a substância química em metáfora de um arco narrativo ideológico que nada tem a ver com medicina.

O arco estende-se da China às "elites globalistas", com escala na OMS. Os três capítulos da narrativa são mais frequentemente difundidos como contos autônomos, mas pertencem a um romance único. Cada um apoia-se em fatos incontestáveis ou hipóteses razoáveis, que sofrem manipulações de natureza conspiratória.

1. China: o vírus emergiu em Wuhan, o regime ocultou a etapa inicial da epidemia e, para proteger o sistema de poder totalitário, provavelmente fabricou estatísticas fantasiosas que miniaturizaram as curvas de infecções e óbitos. Daí, os fanáticos da cloroquina extraem uma conspiração comunista destinada a disseminar globalmente o coronavírus, quebrando economias capitalistas para estabelecer hegemonia mundial da China.

2. OMS: a China impulsionou a escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS e hoje exerce influência sobre a organização similar à que os EUA e os europeus mantêm sobre o FMI e o Banco Mundial. Parceiro de um regime engajado em projetar "soft power" na África, Adhanom celebrou a "eficiência" chinesa no combate à epidemia, calando-se acerca de tudo que possa constranger Xi Jinping.

Dessa parceria os fanáticos da cloroquina extraem um complô veiculado pela OMS para amplificar a crise sanitária e desacreditar o remédio providencial.

3. "Elites globalistas": na linguagem sectária dos fanáticos da cloroquina, a expressão engloba todas as correntes compreendidas entre o liberalismo progressista e a social-democracia, genericamente rotuladas como "socialistas".

Tais elites, articuladas nas instituições internacionais, conduziriam um plano malévolo destinado a subjugar as nações e os capitalismos nacionais. A pandemia funcionaria como pretexto ideal para universalizar as quarentenas, solapar negócios, arrasar empresas privadas e perenizar a intervenção econômica estatal.

A guerra da cloroquina foi declarada pelos mesmos líderes políticos que, há pouco, qualificavam a Covid-19 como "gripezinha". Agora, desmascarados, eles se reagrupam numa trincheira de comprimidos de cloroquina e armam catapultas para assediar o castelo das democracias.

Há pesquisadores sérios convencidos da eficácia da substância no tratamento da doença. Suas reputações serão mais bem servidas se contribuírem com ensaios clínicos randomizados da droga, recusando o papel de porta-vozes científicos da "guerra cultural" alheia.

Chefes do tráfico não cheiram pó, curandeiros confiam sua própria saúde aos médicos, astrólogos profissionais não planejam suas vidas a partir de mapas astrais.

Os fabricantes da conspiração sem fronteiras --que abrange a China, a OMS, a União Europeia, o Partido Democrata, o STF, Maia, Doria, Mandetta e a maldita imprensa-- vendem deliberadamente um produto falsificado.

Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

O cisma de Bolsonaro - ASCÂNIO SELEME

O Globo - 11/04

O desagregador do Planalto consegue provocar cismas até mesmo entre instituições sólidas como a Igreja Católica


O desagregador do Planalto consegue provocar cismas até mesmo entre instituições sólidas como a Igreja Católica. Na quarta-feira, enquanto o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o progressista Dom Walmor Oliveira, criticava Jair Bolsonaro por desinformar o país e “provocar um itinerário para a morte”, católicos da ala conservadora foram para a porta do Alvorada rezar pelo “enviado por Deus para salvar o Brasil do comunismo”.

Verdade que as duas alas da Igreja não se bicam há anos, mas com a chegada de Bolsonaro a separação entre elas voltou a ganhar conotação política. Lembra a guerra de 24 anos entre a CNBB e os religiosos que apoiaram a ditadura de 1964, como se fosse possível homens que acreditam em Deus aceitarem governo que censura, tortura e mata. Esta turma não se envergonhava antes e não se envergonha agora em defender intervenção militar se essa for a forma de evitar a volta da esquerda ao poder.

A ala conservadora da igreja no Brasil vê comunistas em todos os lugares. Até mesmo na Santa Sé, já que muitos chamam o Papa Francisco de comunista e enxergam em alguns de seus atos manobras para sabotar o governo de Bolsonaro. Trata-se de uma bobagem sem tamanho, mas os cristãos da Renovação Carismática Católica que louvaram o presidente na porta do Alvorada disseram que mensagens de Francisco nesse sentido seriam ouvidas durante as pregações da Semana Santa. São tolos, como Bolsonaro.

O grave é que por serem tolos são também perigosos. Defendem as mesmas teses do presidente e concordam com a cruzada pelo fim do isolamento, permitindo que as pessoas “voltem a trabalhar, produzir e salvar vidas”. E, por mais absurdo que pareça, na vigília do Alvorada disseram fazer parte de uma certa “milícia celeste” de apoio ao presidente. Estes fundamentalistas carismáticos brincaram com fogo, fizeram trocadilho com a morte, já que se conhece a proximidade de Bolsonaro com a violenta milícia do Rio.

A CNBB, por sua vez, sempre esteve ao lado da democracia, dos mais fracos, dos excluídos, dos esquecidos. Foi assim durante todo o regime militar, continuou assim ao longo do período democrático inaugurado com a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, em 1985, e segue da mesma forma sob Bolsonaro. Sempre, sob qualquer governo, foi crítica e contundente. Em 2004, atacou o governo Lula por se distanciar dos movimentos sociais. Não é preciso ser muito sabido para dizer quem está com a razão.

Esta divisão alcança também as igrejas evangélicas. Coloca de um lado os que o ex-deputado Chico Alencar (PSOL) chama de “bolsocrentes” e do outro as igrejas evangélicas históricas. Os primeiros acham que o coronavírus é jogada política, acreditam que conseguem exorcizar a praga e vão ao Alvorada pregar ao “escolhido por Deus”. Em 5 de março, um pastor, que tomou meia hora do presidente e o fez ajoelhar no asfalto em frente ao Alvorada, disse a seguinte barbaridade: “Em nome de Jesus declaro que no Brasil não haverá mais mortes pelo coronavírus”.

As igrejas históricas entendem que o presidente precisa ser freado. O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil repudiou em nota oficial o pronunciamento em que Bolsonaro disse que se fosse acometido pelo coronavírus teria apenas uma gripezinha em razão de seu passado de atleta. Na internet, alguns grupos afirmaram que Bolsonaro “segue o delírio de poder e vaidade” e defenderam a renúncia.

O cisma religioso de Bolsonaro lembra a metáfora que Frei Betto construiu no seu mais novo livro, “O diabo na corte - Leitura crítica do Brasil atual”. Ele descreve um reino em que o diabo dissemina “a confusão semântica”, onde as palavras perdem os seus significados ou os têm trocados. E cita uma princesa que diz ser uma pessoa “terrivelmente religiosa”. Certamente a palavra “terrível”, que é aquilo que causa ou infunde terror, não deveria combinar com “religiosa”. Mas naquele reino combina, graças ao diabo. E nesse aqui parece que também.

A OMS precisa se explicar

Trump não tem razão ao ameaçar cortar fundos da Organização Mundial da Saúde por causa do alegado centralismo chinês da entidade. Mas a OMS, que é maior que questões regionais, tem que explicar por que recomendou que não se fechassem fronteiras nem se proibissem viagens quando mais de cem países já haviam detectado o coronavírus e por que demorou tanto para declarar a pandemia. Pode não ter sido uma decisão política, mas ela com certeza agradou a China que, àquela altura, tentava evitar perdas econômicas com possíveis embargos de natureza sanitária. A OMS só foi reconhecer que o contágio se dava entre humanos em janeiro, mesmo sabendo desde dezembro que havia casos fora de Wuhan. A China fez tudo o que pôde para esconder o vírus, e a OMS aparentemente fez pouco para contestar a informação falsa. Um excelente documentário do Spotniks no ar no YouTube mostra cronologicamente como o mundo perdeu tempo por essa negligência.

Super-homem

Máscara não é capa. Ela pode proteger, mas não transforma ninguém em super-herói. Preste atenção, você não vai voar. O fato é que até os motoristas das Kombis de ferro-velho, que voltaram a circular, estão usando máscara. Cada dia tem mais mascarados andando nas ruas do Rio. Mas, pior, a cada dia há mais gente nas ruas do Rio, com e sem máscaras. Melhor mesmo é ficar em casa, não façam como Bolsonaro.

Macondo é aqui

Jair Bolsonaro parecia Aureliano Buendía, ainda menino, quando foi levado pelo pai para conhecer o gelo num acampamento de ciganos em Macondo. No seu último pronunciamento na TV, ele se referiu à cloroquina com o mesmo assombro de Aureliano ao se deparar com o gelo ou com o imã. A diferença é que em “Cem anos de solidão” “o mundo era tão recente que as coisas ainda careciam de nome”. Agora, não.

Rodízio contra o corona

O governo de Honduras inovou. Vai relaxar o isolamento social a partir da semana que vem produzindo um rodízio de pessoas. Os titulares de identidades com finais 1 e 2 poderão sair nas segundas, 3 e 4, nas terças, e assim sucessivamente até sexta. Fim de semana, todos em casa. Interessante, mas tem que ver como se fiscaliza isso.

Dr. Cloroquina

Pode dar certo? Pode. Todo mundo está torcendo para que dê, afinal ainda não existe remédio para combater a Covid-19. Se a cloroquina funcionar mesmo, será um êxito inesperado e muito mais do que bem-vindo. Por isso, o irresponsável do Palácio do Planalto pode se agarrar nela como se fosse invenção sua. Mas o que não pode é um médico infectado pelo vírus afirmar que dela fez uso e melhorou. E por que não pode? Porque esse médico tomou também antibióticos, analgésicos e antitérmicos contra a Covid-19. Ele poderia dizer que o analgésico o curou? Não. E certamente não diria. Mas para agradar um grandão do Planalto Central, dr. Cloroquina diz qualquer coisa.

Live dá dinheiro

Sensacional essa onda de artistas fazendo lives com pequenos shows para alegrar a quarentena de seus fãs. Mas tem uma turma que está ganhando dinheiro com a iniciativa. Os sertanejos Jorge e Mateus, por exemplo, estão faturando US$ 200 mil por uma série de shows patrocinados pela Ambev. São distribuídos pelo YouTube e servem como alavancas para doações de alimentos, EPIs e álcool em gel. O primeiro deles, com 23 milhões de visualizações, levantou 172 toneladas de alimentos e 10 mil frascos de gel, segundo site dos artistas. Beleza. Agora, nada contra ganhar dinheiro, cada um se defende como pode, mas tem colegas da dupla caipira sugerindo que Jorge e Mateus doem seu cachê para a mesma causa sanitária e social.

Jornalista em perigo

O prefeito da pequena Sacramento (MG), Wesley de Santi de Melo (o Baguá), declarou ao IR crescimento patrimonial de 350% entre os dois mandatos que exerceu. Detalhe que passou despercebido até a chegada na cidade de Antonio Ribeiro, ex-correspondente da “Veja” em Paris e ex-editor de Fotografia do GLOBO. Ribeiro foi passar um ano sabático na cidade em que nasceu e se deparou com o que ele chamou de “um mar de irregularidades”, como a compra de gasolina em quantidade tão grande que nem com a frota da prefeitura rodando 24 horas por dia seria possível consumir tudo. O jornalista, que publica o que descobre no Sacramento Notícias, um jornal digital local, já recebeu três ameaças de morte e as denunciou ao Ministério Público.

O papel de cada um - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 11/04

Se algo inspira algum otimismo, é a certeza de que as instituições como o Supremo e Congresso são capazes de proteger o País das investidas irresponsáveis do presidente

Uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em caráter liminar, impede que o presidente Jair Bolsonaro suspenda unilateralmente as medidas de isolamento tomadas por Estados e municípios para enfrentar a pandemia de covid-19. No entender do ministro, o presidente da República, caso resolva levar adiante sua ameaça de realizar esse tipo de intervenção nos entes subnacionais, estará violando preceitos constitucionais como a proteção à saúde e o respeito ao federalismo e a suas regras de distribuição de competências.

O ministro enfatizou que é justamente em “momentos de acentuada crise” como este que se faz mais necessário o espírito de cooperação entre os Poderes e os entes federativos, “em defesa do interesse público” e “sempre com absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional”, de modo a evitar o “exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de covid-19” – referência clara às atitudes de Bolsonaro, que vive a se jactar do poder da caneta presidencial.

Em seu despacho, o ministro Alexandre de Moraes observa, no entanto, que “lamentavelmente” é “fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de governo”, aludindo ao confronto público entre Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, acerca do melhor modo de conter a pandemia. Na opinião do ministro do STF, isso acarreta “insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade”.

O ministro salientou, ademais, que as decisões tomadas por Estados e municípios são “reconhecidamente eficazes” contra a epidemia, em consonância com as recomendações da Organização Mundial da Saúde e da maioria absoluta dos mais respeitados institutos científicos do mundo.

Em resumo, a decisão do ministro Alexandre de Moraes é essencialmente correta nos seus aspectos legais e muito oportuna em suas observações a propósito da necessidade premente de unificar o discurso das autoridades na sustentação do isolamento social como única forma efetiva, no momento, de atrasar o previsível colapso do sistema de saúde.

O presidente Bolsonaro havia dito, há alguns dias, que tinha pronto sobre sua mesa um decreto por meio do qual obrigaria Estados e municípios a suspenderem as medidas restritivas. Na ocasião, ele mesmo reconhecia que o decreto poderia ensejar “sanções” contra ele e que esperava “o povo pedir mais” para assiná-lo. Anteontem, voltou a tocar no assunto, para dizer que estuda transformar o decreto em projeto de lei, “e mandar para o Parlamento decidir”. Ou seja, não desistiu da ideia de atropelar a autonomia de Estados e municípios para estabelecer medidas de isolamento social.

À TV Bandeirantes, na quarta-feira passada, Bolsonaro voltou a dizer que governadores e prefeitos que “tomaram medidas em desacordo com a população têm que refazer seu programa e voltar a abrir o comércio”. Mais tarde, em pronunciamento em rede nacional, Bolsonaro disse que “o governo federal não foi consultado” pelos governadores a respeito das medidas de isolamento social e que, portanto, essas “são de responsabilidade exclusiva dos mesmos”. Aposta assim, mais uma vez, na politização da crise, ao jogar na conta das autoridades estaduais e municipais os terríveis efeitos econômicos do isolamento, como se houvesse alternativa a essas medidas, adotadas em quase todo o mundo ante a escalada da pandemia.

Mas o presidente, já se sabe, só está preocupado em afastar de si qualquer responsabilidade pela crise. Para isso, não se importa em ameaçar o princípio federativo previsto na Constituição nem em estimular, em rede nacional, o consumo de um remédio cuja eficácia ainda não foi comprovada e que, por outro lado, provoca perigosos efeitos colaterais.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro exigiu de seu ministro da Saúde que passe a adotar um discurso otimista. Não será fácil. Se algo inspira algum otimismo neste momento, é a certeza de que as instituições, como o Supremo e o Congresso, são capazes de proteger o País das investidas irresponsáveis do presidente.