sábado, fevereiro 24, 2018

"Começar é preciso" - DORA KRAMER

REVISTA VEJA

Sob o eco da repressão militar, o poder civil se retrai na luta contra o crime


É fato testado, comprovado (e lamentado) que nenhum dos governos desde a reinstituição do poder civil no país enfrentou a questão da segurança pública. Por motivos variados: covardia, indiferença, cálculo político e, no caso das autoridades oriundas da esquerda, constrangimento para o exercício do uso da força do Estado contra o crime. Princípio equivocado de rejeição a qualquer tipo de repressão.

Uma visão herdada da ditadura. Obviamente torta, pois não leva em conta que a defesa da liberdade e dos direitos do cidadão implica a preservação da ordem como fator essencial da garantia de ir e vir sem o risco permanente e iminente de morrer. Tal inépcia nos levou ao descalabro atual.

O caos é nacional, mas o Rio de Janeiro viveu peculiaridades. Entre elas, a mais grave foi o acolhimento da bandidagem como parte do cenário de glamour e maravilha da cidade. Conto duas histórias que vi de perto: uma na década dos 90, a outra anos antes de consolidada a redemocratização no Brasil, em 1985. Nenhuma delas de violência pessoal, embora ambas conceitualmente violentas do ponto de vista geral.

Em 31 de dezembro de 1985, o traficante José Carlos dos Reis Encina (chamado “Escadinha”) foi resgatado do presídio da Ilha Grande por comparsas num helicóptero. Na hora, a fuga foi celebrada com aplausos e muito regozijo na redação do Jornal do Brasil, composta na quase totalidade do “pessoal Zona Sul”, os descolados, como um grande feito. A polícia, naquela concepção, era o inimigo a ser combatido e, como foi o caso, ludibriado.

A comemoração assustava a quem não concordava e, por isso, era classificado como “de direita”. Aos de “esquerda” parecia normal, tanto que “Chileno”, pai do bandido Escadinha, era, em 1986, festejado cabo eleitoral do então candidato ao governo do Rio Fernando Gabeira, hoje uma das cabeças mais lúcidas sobre o Brasil e suas novas circunstâncias; tanto que saiu do PT ainda no primeiro governo, quando Luiz Inácio da Silva estava no auge.

Mais de uma década depois, já no governo Fernando Henrique, numa conversa com o general Alberto Cardoso, ele, então chefe do Gabinete de Segurança da Presidência, alertou sobre a existência de “territórios dominados” pelo tráfico no Rio. Isso há quase vinte anos.

Publiquei a conversa com o general, e o mundo caiu. Marcello Alencar reagiu indignado, exigiu do presidente uma atitude, e o general me ligou constrangido: “Mantenho o que disse, mas vou precisar desmentir por exigência do governador”.

Forçado pela circunstância do cargo, o general desmentiu, e a vida prosseguiu. Levou-nos, rendidos, ao lugar de reféns da bandidagem em que hoje nos encontramos. Ambiente do qual qualquer candidato(a) a presidente na próxima eleição está obrigado(a) desde já a dizer como pretende nos livrar. De modo rápido e de maneira nada rasteira, a fim de nos assegurar uma necessária e indispensável consistência no ato coletivo de resistência.

Sem um projeto de Nação - JOÃO DOMINGOS

ESTADÃO - 24/02

A desesperança pode fazer com que o eleitor fique longe das urnas


Ex-presidente do TSE, o ministro Dias Toffoli aproveitou ontem um debate na Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, para lembrar que os partidos hoje se escoram em nomes para a Presidência da República e não em um projeto para o País. “Hoje está uma tremenda dificuldade de entender quem é quem. Hoje, qual o projeto do PT, do DEM, do PSDB?”, indagou o ministro.

De fato, a sete meses e poucos dias para a eleição, não se conhece um projeto de governo de nenhum dos nomes que se apresentaram até agora como pré-candidatos. Em alguns partidos, como o PT, o projeto parece ser o próprio candidato, o ex-presidente Lula. Uma proposta defeituosa do ponto de vista legal. Por enquanto, o que ele tem dito é que não acatará a decisão judicial que o condenou a 12 anos e 1 mês de prisão e o tornou inelegível, pois cadastrado na Lei da Ficha Limpa. E, quando em algum discurso se refere a um possível quase impossível governo, limita-se a prometer que fará mais do que já fez.

Do mesmo modo, não se vê no que diz o segundo colocado nas pesquisas, o deputado Jair Bolsonaro, algo que possa ser definido como um projeto para o Brasil, que englobe educação, saúde, transportes públicos, crescimento econômico, geração de empregos. O discurso fica limitado ao combate à criminalidade, sem dizer como será, a não ser insinuações de que bandido bom é bandido morto. Não há sinais de que as raízes do problema serão atacadas. Nada. É muito pouco para quem tem conseguido avançar sobre as ideias da juventude desiludida e sem emprego.

O governador Geraldo Alckmin é outro que também não apresentou ainda um projeto para o País. Diz ser a favor das privatizações, que é desenvolvimentista e que não ficará apenas grudado às questões fiscais. Mas cadê o projeto para a educação, para a assistência à saúde, que deveria, pela Constituição, ser universalizada, uma proposta da qual Alckmin participou como constituinte, para os transportes públicos, para a segurança?

Henrique Meirelles, do PSD, e Rodrigo Maia, do DEM, que também se apresentaram para o jogo político, por enquanto estão presos às questões fiscalistas. Marina Silva, da Rede, e Ciro Gomes, do PDT, que esperam herdar parte dos votos de Lula, também estão devendo o projeto para a Nação.

Quanto ao presidente Michel Temer, que numa entrevista à Rádio Bandeirantes, ontem, disse que não será candidato, será razoável que seu governo se encerre tendo por base a intervenção no Rio de Janeiro? É provável que ele ache que sim, porque enquanto a ação durar não se pode fazer nenhuma reforma constitucional. Portanto, a reforma da Previdência ficou para trás. E a chamada “Agenda 15”, que manteria a linha das reformas sem mexer na Constituição, talvez seja atropelada pela campanha eleitoral.

Além da falta de projetos para a Nação, o que torna DEM, PSDB e PT semelhantes, nas palavras do ministro Dias Toffoli, o País sente falta de lideranças novas. Os que se propõem a disputar a eleição presidencial são todos velhos conhecidos do eleitor. Uns, pelo número de disputas ao Planalto; outros, como Bolsonaro, por ocuparem cargos eletivos há duas décadas.

Alguns preveem que sem Lula o índice de abstenção nas eleições de outubro será muito elevado. Talvez um dos motivos para a abstenção, se houver, seja mesmo a ausência de Lula. Mas não é só ela. A falta do projeto de Nação, as velhas caras conhecidas, a desesperança quanto à situação do País, tudo isso pode fazer com que parte do eleitor fique longe das urnas.

Sem alternativas, a razão pode levar o cidadão a exercer o seu direito de dizer não. Mesmo que o protesto seja silencioso, baseado no absenteísmo.

O delírio da certeza - MURILLO DE ARAGÃO

REVISTA ISTO É

Os idiotas têm muitas certezas. Já os sábios têm dúvidas e confiança na necessidade de buscar respostas. No Brasil, os idiotas fazem mais barulho do que os homens comuns e os sábios

Duas coisas fundamentais para o viver: a dúvida e a confiança. O mundo gira em torno desses dois sentimentos. Tanto a dúvida quanto a confiança nos impulsionam. Ambos, porém, estão em falta no Brasil.

Ainda que possa parecer paradoxal, os idiotas têm muitas certezas. Já os sábios têm dúvidas e confiança na necessidade de buscar respostas. No Brasil, os idiotas fazem mais barulho do que os homens comuns e os sábios. A certeza é outro componente da questão central da dúvida e da confiança. Mas é uma vulgata, já que a certeza foi vulgarizada pela sua banalização.

Sem dúvidas e desconfiando de tudo, os adoradores do “não é possível que” utilizam essa expressão como abertura dos trabalhos mentais para, adiante, concluí-los com um “com certeza”. Em especial, nas respostas prontas a perguntas que visam respostas ratificadoras ao que é perguntado. Do tipo entrevista de rua sobre o BBB.

Nesse caso, perguntado e perguntador são hamsters que dividem a roda onde correm para ficar no mesmo lugar. É o prazer de atender à expectativa de quem pergunta e encaixar a sua previsível resposta em um quebra-cabeça de e para debiloides.Hoje, no mundo, existe uma conspiração contra os especialistas. Ironicamente, o tema é tratado por alguns especialistas e não é revanchismo. Milhares de subcelebridades e celebridades falam sobre tudo com aparente propriedade e são validados pela mídia.

Muitas vezes a mídia opera para transportar o que a mediocridade majoritária quer ouvir e/ou manipular os sentimentos de acordo com as suas expectativas. Ignorantes são indagados e respondem o que serve para validar o que se quer mostrar ao público.

Atualmente, sabemos mais em volume de informação do que sabia Michel de Montaigne em 1580 . Contudo, o que ele sabia vale muito mais do que o que sabemos hoje em termos de filosofia. Na roda do hamster, quanto mais sabemos menos sabemos.

O que fazer? Pela ordem: duvidar de tudo; desejar e esperar o melhor, mas estar preparado para o pior. Saber ao certo em quem confiar e não ser capturado pelo “não é possível que”, que leva, “com certeza”, a conclusões preconcebidas e rasteiras.

Dois pesos e duas medidas - RICARDO AMORIM

REVISTA ISTO É

O governo federal sancionou o projeto que concede os benefícios às grandes empresas, mas vetou aquele que concederia os mesmos benefícios às micro e pequenas empresas

O Brasil criou o péssimo hábito de não tratar todos da mesma forma. Pior ainda, o costume ficou tão arraigado que já nem nos chocamos mais. Enquanto funcionários públicos se aposentam com aposentadoria integral, a maioria dos brasileiros têm de se contentar com uma fração disso. Enquanto a Justiça para a maioria dos brasileiros é uma, para os que gozam de foro privilegiado é outra. Enquanto juízes e legisladores têm auxílios diversos, a maioria dos brasileiros nem sabe o que é isso.

O mais novo caso em que os mais fracos receberam tratamento de cidadãos de segunda classe refere-se ao Refis, o programa de refinanciamento de dívidas do governo federal. Como é de conhecimento geral, o Congresso Nacional aprovou um projeto que beneficia grandes empresas com o parcelamento de dívidas tributárias com a União. Na sequência, ele aprovou por unanimidade um projeto que estende o mesmo benefício aos pequenos negócios, nos mesmos parâmetros do que foi concedido às grandes empresas. O governo federal sancionou o projeto que concede os benefícios às grandes empresas, mas vetou aquele que concederia os mesmos benefícios às micro e pequenas empresas.

A justificativa para o veto presidencial foi que esse projeto pioraria a situação das contas públicas. A justificativa é verdadeira, mas inaceitável, já que ela foi desconsiderada no caso das grandes empresas. Além de não ser isonômico, o tratamento diferenciado é injusto e contraproducente.

As micro e pequenas empresas são responsáveis por mais da metade dos empregos no País e mais vulneráveis a crises econômicas, como a que atingiu o Brasil nos últimos anos. Segundo a Serasa, o número de MPEs inadimplentes cresceu 10,8% em 2017 em relação ao ano anterior, sendo o oitavo mês seguido de alta do indicador.

Além disso, nossa carga tributária é uma das mais elevadas entre os países emergentes e, ainda assim, os serviços públicos deixam muito a desejar. Fica claro que o problema essencial das finanças públicas não é falta de receitas, mas a corrupção e o excesso de gastos e desperdícios, incluindo diversos casos em que alguns recebem privilégios não estendidos a todos os brasileiros.

Seria bom se o Congresso revertesse esse quadro, derrubando o veto presidencial e garantindo que pequenas e grandes empresas recebam o mesmo tratamento. Movimentos já estão acontecendo e estratégias estão sendo pensadas para isso. Imagine o País que poderíamos construir se todos fossem tratados da mesma forma.

A guerra mais importante - RODRIGO CONSTANTINO

REVISTA ISTO É

Ninguém nega que numa operação dessas há risco de abusos, ou que eles devem ser denunciados

Seja por oportunismo político, seja por convicção genuína, o fato é que a decisão do governo Temer de apelar para a intervenção federal no Rio suscitou intenso debate sobre a criminalidade no País. E poucas vezes ficou tão clara a divisão: de um lado estão aqueles que mascaram a defesa da impunidade com a preocupação com eventuais abusos dos militares, e do outro estão aqueles que simplesmente não aguentam mais o domínio escancarado dos bandidos.

A turma da extrema esquerda correu para tentar impedir a medida, sob o disfarce de ameaça aos “direitos humanos”. Ora, ninguém nega que numa operação dessas há risco de abusos, ou que eles devem ser denunciados. Tampouco se rejeita condições humanas para os marginais detidos. A questão é outra, e no fundo os socialistas sabem disso muito bem, mas tomam o partido dos bandidos, por afinidade ideológica (o roubo visto como um ato de “justiça social”).

Tampouco a medida improvisada está isenta de críticas legítimas. Ao contrário! A direita entende que colocar o Exército na rua é medida emergencial, e que sem outras mudanças estruturais será apenas como enxugar gelo. Não o quer a esquerda, como legalização de drogas, soltura de bandidos ou “investimento social”, mas sim seu oposto: endurecer com os marginais, construir mais prisões, reduzir a maioridade penal, permitir posse de armas aos cidadãos, acabar com as proteções descabidas de quem comete crimes.

Se a guerra contra o crime é necessária, ela representa apenas o começo. Mais importante é a guerra cultural, das narrativas. Ora, em qualquer situação de guerra, presume-se que haverá fatalidades, e que o inimigo não merece tratamento VIP. As baixas já temos, mas concentradas hoje na população trabalhadora. Os marginais já contam com muitas regalias também. É essa mentalidade que precisa mudar.

Quem anda nas favelas carregando um fuzil senão um perigoso assassino? A mesma esquerda que aplaude se o governo proíbe um cidadão honesto de ter uma simples pistola em casa, acha que o bandido com arma de guerra deve ser tratado com leniência? Se tem uma arma dessas na mão, então é alvo a ser eliminado, ponto. A vida do policial e a segurança do povo são as prioridades, não os “direitos” de quem declarou guerra ao sistema.

A reforma trabalhista e a moralização do acesso à Justiça - RENATO TARDIOLI

GAZETA DO POVO - PR - 24/02

Não há mais impunidade para as reclamações infundadas e abusivas

Todo trabalhador brasileiro pode – e deve – recorrer à Justiça quando seus direitos e benefícios, previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e na Constituição Federal, são desrespeitados. Mas, infelizmente, os Tribunais Regionais do Trabalho lidam diariamente não só com reclamações bem fundamentadas, mas também com outras inconsistentes ou que envolvem indenizações descabidas.

Este é um cenário que já começou a mudar após a implantação da reforma trabalhista, que teve por objetivo primordial regulamentar novas formas de contratação de trabalhadores, bem como sua relação com o empregador. Por que isso acontecia? Porque era muito fácil para o trabalhador – e não trazia qualquer “risco” financeiro – iniciar um processo trabalhista. Em muitos casos, especialmente se ainda não estava trabalhando, o reclamante conseguia acesso à Justiça gratuita, o que o isentava de custas processuais. Quase sempre as empresas acionadas já se antecipavam a fazer algum tipo de acordo, já prevendo que estavam em desvantagem – ou porque realmente deviam algo ou pelo simples fato de serem o empregador, a parte “mais forte”. E, se o empregado perdia, ele simplesmente perdia, não tinha de arcar com qualquer tipo de despesa como honorários advocatícios da parte contrária, perícias ou custas do processo.

A possibilidade de perder dinheiro, além do processo, certamente inibiu grande parte das demandas


Esta realidade fez com que os Tribunais Regionais do Trabalho em todo o país recebessem, em média, 200 mil novos casos em primeira instância por mês, segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho. Antes de a reforma trabalhista entrar em vigor, o volume foi ainda maior. Porém, em dezembro de 2017, primeiro mês em que já se aplicavam as mudanças, este número despencou para 84,2 mil.

Há duas razões que podem explicar esta queda. Uma delas envolve dúvidas sobre como os juízes vão aplicar a nova lei. A Justiça do Trabalho é dividida por regiões. Cada uma tem o seu entendimento, e leva um tempo até que estas questões sejam submetidas ao Tribunal Superior do Trabalho. Não há previsão sobre quando haverá consolidação ou o entendimento de muitas delas.

Outra razão é que, caso o empregado perca o processo, ele pode ser condenado a pagar as custas processuais da parte vencedora, bem como os honorários de sucumbência, que envolvem as perícias e despesas com os advogados. A possibilidade de perder dinheiro, além do processo, certamente inibiu grande parte das demandas.

O que se pode afirmar, com certeza, é que o Direito Trabalhista ainda enfrenta o desafio de entender todas as mudanças que vieram com a reforma e ver como elas vão funcionar – ou não – na prática. Independentemente de eventuais dúvidas e inseguranças, a boa notícia é saber que não há mais impunidade para as reclamações infundadas e abusivas. É a moralização do acesso à Justiça trabalhista.


Renato Tardioli é advogado.

Rebaixados mais uma vez - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 24/02
Não há “plano B” de 15 medidas, nem inflação e juros em baixa que consigam atenuar o impacto negativo que a não aprovação da reforma da Previdência terá sobre os cofres públicos

Nesta sexta-feira, a agência de classificação de risco Fitch seguiu o que a Standard and Poor’s já tinha feito em janeiro: rebaixou a nota de crédito do Brasil para um nível que fica três degraus abaixo do “grau de investimento”, que identifica as economias mais sólidas e confiáveis. Mas só alguém muito desatento teria como se surpreender com a decisão: ela era praticamente certa a partir do momento em que o governo federal abandonou a reforma da Previdência.

O que as agências como a Fitch têm observado é o preocupante abismo fiscal em que o Brasil está para cair. Desde 2015, o país tem emendado déficits primários que superam a casa dos US$ 100 bilhões, em uma demonstração cabal de que não tem sido capaz de fazer nem mesmo a economia necessária para pagar os juros de sua dívida – e em 2018 não será diferente, como demonstra a previsão feita pelo governo. A agência de classificação de risco prevê, para este ano e o próximo, déficits primários equivalentes a pouco mais de 7% do PIB, contra 3% na média de outros países com a nota BB – aquela que o Brasil tinha antes de ser rebaixado.

A irresponsabilidade de quem jogou contra a reforma está custando caro demais ao país


Sem conseguir controlar seus gastos, o Brasil corre o risco de ver a dívida pública escapar do controle, e esse é outro aspecto ressaltado pelas agências. Em janeiro, a Secretaria do Tesouro Nacional informou que só em 2017 a dívida pública federal subiu quase 15%, para R$ 3,55 trilhões, tendo mais que dobrado em dez anos. Nas contas da Fitch, a dívida brasileira já equivale a 74% do PIB e deve chegar a 80% no ano que vem. Em outubro do ano passado, a Instituição Fiscal Independente, órgão que acompanha as contas pública e assessora o Senado, afirmou que, sem um ajuste fiscal sério, a dívida atingiria os 100% do PIB no início da próxima década. E a comparação com outras nações cuja dívida é bem maior não se sustenta, pois, enquanto nações como Japão e Estados Unidos se endividam a juros baixíssimos, a dívida brasileira é cara para o governo – mesmo no caso dos títulos de rendimento mais baixo.

O que poderia colocar um freio nessa trajetória era a reforma da Previdência. Mesmo na versão mutilada pelo Congresso, que manteve uma série de privilégios para categorias que souberam gritar mais alto, a projeção do Ministério da Fazenda era a de que ela permitiria ao governo economizar pouco menos de R$ 500 bilhões em dez anos – na sua versão original, seriam quase R$ 800 bilhões. Tudo isso foi simplesmente descartado quando o governo jogou a toalha. A Previdência, que já é hoje a maior das rubricas do orçamento da União, continuará acumulando seus déficits bilionários, pressionando as contas públicas e comendo fatias cada vez maiores do bolo, deixando cada vez menos dinheiro para saúde, educação, segurança e infraestrutura, para citar apenas alguns setores.

E não há “plano B” de 15 medidas, nem inflação e juros em baixa que consigam atenuar o impacto negativo que a não aprovação da reforma da Previdência terá sobre os cofres públicos. A questão, afirmam as agências, não é o curto prazo, em que o IPCA está abaixo do piso da meta de inflação e em que a Selic está em sua mínima histórica. “A decisão do governo de não colocar a reforma da Previdência em votação no Congresso representa um importante revés na agenda de reformas e reduz a confiança na trajetória de médio prazo das finanças públicas”, disse o comunicado da Fitch. A irresponsabilidade de quem jogou contra a reforma – seja espalhando desinformação, seja promovendo sua mutilação, seja chantageando o governo em troca de apoio – está custando caro demais ao país.

"O cidadão a sós" - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

'VOLTA DOS MILITARES' PARA CONSERTAR TUDO ISSO? PODE-SE ACHAR A PIOR OPÇÃO - E TEM TUDO PARA DAR ERRADO - MAS, NA VERDADE, CRESCEM MOTIVOS PARA PENSAR ASSIM


Baile funk - Seu principal derivado, o estupro coletivo de garotas menores
de idade, tornou-se símbolo de orgulho do “morro” (//Reprodução)
A intervenção do Exército no Rio de Janeiro, em mais uma tentativa de combater a ocupação armada da cidade pelos criminosos, recebeu a aprovação de 80% da população — é o que mostram os primeiros levantamentos feitos logo após a chegada das tropas federais a esse pedaço do território brasileiro onde o crime está em guerra aberta contra os cidadãos. Houve, naturalmente, reações preocupadas por parte de muita gente — e não apenas da esquerda. (Com aquele seu instinto que nunca falha na hora de ficar contra a opinião da maioria, o PT e sua periferia, automaticamente, escandalizaram-se com a intervenção. O que fizeram é o que sempre fazem quando se trata de escolher entre a criminalidade, que a seu ver toma parte nas “lutas populares”, e a ordem pública, que consideram coisa de “direita”: ficaram, de olhos fechados, a favor do crime.) Junto com a reação habitual dos nossos revolucionários, veio o espanto apreensivo de uma parte do Brasil “civilizado”. O apoio maciço à intervenção no Rio, segundo dizem, mostraria uma angustiante e apressada inclinação do brasileiro a acreditar que os militares são “a solução” para tudo — crime, corrupção, incompetência e todas as demais taras do Estado e da sociedade no Brasil. Seria uma expectativa ruim, mesmo porque é impossível de ser atendida.


Não dá para medir com exatidão se os brasileiros acreditam mesmo em soluções militares. Mas, com certeza, uma população que há muito tempo não tem o mínimo motivo para levar a sério o governo, é insultada abertamente pelas decisões de um Supremo Tribunal Federal que presta vassalagem a condenados por corrupção e é tratada como débil mental pelo pior conjunto de deputados e senadores hoje presentes sobre a face da Terra não poderia mesmo pensar como se estivesse vivendo na Inglaterra. Que raio se pretende, então, que as pessoas achem? Está cada vez mais difícil para o cidadão, e daqui a pouco pode tornar-se impossível, ficar a sós — vendo em silêncio os seus direitos mais básicos ser violados pelos criminosos, com a proteção de leis feitas para atender aos interesses de bandidos e seus defensores. Salvo os próprios criminosos à mão armada, as quadrilhas que roubam o Erário e o resto dos marginais em circulação por aí, ninguém pode permanecer calmo enquanto o sistema judiciário, a partir de seu degrau mais alto, solta sistematicamente quem deveria estar preso ou mantém fora da prisão quem foi condenado e deveria estar lá dentro. Para a população brasileira, no fim das contas, a situação criada no país é simplesmente incompreensível. “Volta dos militares” para consertar isso? Todo mundo está no direito de achar que se trata da pior opção, mesmo porque é o tipo da coisa que tem tudo para dar errado. Mas é inútil esconder que todo mundo também está no direito de achar exatamente o contrário. Na verdade, há um número cada vez maior de motivos concretos para pensar assim.

“Ninguém pode permanecer calmo enquanto o Judiciário solta quem deveria estar preso ou mantém fora da prisão quem deveria estar lá dentro”

O que querem, sinceramente, que o cidadão pense quando vê uma assassina que ajudou a matar o próprio pai a golpes de barra de ferro ser solta, com o apoio enfurecido do Ministério Público, para passar fora da prisão o Dia dos Pais — justamente o Dia dos Pais? É a lei, dizem advogados, promotores e juízes — mas não lhes passa pela cabeça que uma coisa dessas está acima do entendimento de qualquer ser humano deste planeta. O recado que dão é o seguinte: se a lei é demente, problema seu. Obedeça e cale a boca. Como condenar alguém por sonhar com “os militares”, quando uma promotora de Justiça, que é paga (com todos os “adicionais”) para nos defender dos criminosos, diz que “bandido bom é bandido vivo, e com direitos”? Concorde com a promotora, se quiser — mas não estranhe que alguém discorde e um dia passe a achar que “o único jeito é chamar o Exército”. Mais: é razoável esperar que alguém concorde, ou entenda, que um homicida tenha o direito de cumprir apenas um sexto da pena a que foi condenado? De vinte anos de cadeia, por exemplo, só cumpre três. Faz sentido um negócio desses? Para que serve um Código Penal se ele é anulado pelas leis de “progressão da pena”, regime semiaberto, prisão domiciliar ou tornozeleira para ladrão que rouba o Tesouro Nacional?


A população brasileira, na verdade, vem sendo provocada, cada vez mais, pelo crime e por seus protetores. No Rio de Janeiro, os policiais continuam sendo assassinados na média de um a cada três dias, e 90% das autoridades acham isso perfeitamente normal. Cerca de 40% dos moradores não recebem mais o correio, pois a entrega foi suspensa por causa dos ataques da bandidagem. As seguradoras não aceitam mais fazer seguros para cargas destinadas ao Rio. Se isso não é desafiar as pessoas e abrir a porta para o desespero, o que seria, então? Os cidadãos, ainda por cima, são humilhados diariamente pelo apoio público que os seus opressores recebem da elite “civilizada”, da mídia, da Igreja Católica, e por aí afora. Dizem, esses todos, que o grande problema do Rio de Janeiro não são os crimes praticados contra a população, mas a morte de criminosos em confrontos com a polícia. (Quando morrem em brigas entre si próprios não há maiores comentários.) Ficam indignados com os “excessos da legítima defesa”, e exigem mais rigor contra quem usa a força para defender sua propriedade e sua vida dos ataques de bandidos.


Que provocação maior se poderia fazer às pessoas do que o estímulo aos bailes funk e a seu principal derivado, o estupro coletivo de garotas menores de idade? Tornou-se um símbolo de orgulho “do morro”, e de seus admiradores do Leblon, a “tábua do sexo” — um banco de madeira onde os homens ficam sentados nos bailes, enquanto meninas de até 12 anos de idade se ajoelham sobre suas coxas para fazer sexo, em público, com o maior número possível de machos. São chamadas de “preparadas”; as que já têm “dono”, e por isso não participam, são as “cachorras”. Há garotas que ficam grávidas — seus bebês são os “filhos da tábua”. A polícia, obviamente, está proibida de entrar. Os formadores de opinião consideram que isso seria um ato de repressão contra o “lazer popular”.
 Nenhuma feminista, até hoje, abriu o bico para fazer alguma objeção à prática desses crimes em massa contra a mulher — sexo com menores de 14 anos é estupro, haja ou não consentimento da vítima. Os grandes astros do funk, que animam os bailes da “tábua” e pregam a favor do crime nas letras de sua música, têm circulação triunfal nos programas de variedades da Rede Globo; dão entrevistas à imprensa e são bajulados pelas classes intelectuais. A ideia-mãe é a seguinte: tudo isso forma hoje o que seria uma nova manifestação cultural, a chamada “cultura da comunidade”. Ela é sagrada. Não pode sofrer a mínima restrição. Qualquer crítica é “preconceito” da “elite branca”.

O que há de estranho, diante de tudo isso e muito mais, no fato de 80% da população aprovar a intervenção militar no Rio? O mundo descrito acima não é normal, nem desejável, para a imensa maioria, por mais que a “esquerda” insista em dizer o contrário. Não é normal em nenhuma outra cidade do Brasil. Por que seria aceitável no Rio? A chance de dar certo é zero.

Intervenção parcial - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 24/02
Para atacar o crime em seus diferentes universos, a Lava-Jato poderia avançar nos processos contra os políticos

A intervenção federal no Rio foi feita por um governo impopular. E feita apenas parcialmente. Deveria ser completa.

Não creio que seja o caso de defendê-la diante das teorias conspiratórias, de esquerda ou direita, que veem nela uma espécie de ataque ao seu projeto eleitoral. É inevitável que as pessoas fixadas na luta pelo poder interpretem tudo, mesmo um fato dessa dimensão social, como simples contador de votos.

A intervenção está aí. O governo é impopular, mas o instrumento é o Exército, com grande credibilidade. Se escolher atos espetaculares para tirar Temer do sufoco vai afundar com ele.

Logo, a primeira e modesta tese: o norte é a prática militar, com preparo e meios materiais necessários, e não o oportunismo político. Se prevalecer a superficialidade do governo, a batalha será perdida.

A intervenção tem de saber o que quer, para definir a hora de acabar. Isso não se define com uma data rígida no calendário, mas com a realização da tarefa: estabilizar a situação do Rio para que a polícia tome conta depois de reestruturada. É isso que fazem as intervenções, mesmo num país como o Haiti.

Para reestruturar a polícia é preciso contar com a parte ainda não corrompida e pagar todos os salários em dia.

A maioria parece apoiar a intervenção. É fundamental respeitar a população, conquistar corações e mentes. Nesse sentido, foi um grande passo civilizatório o vídeo de três jovens orientando os negros a evitar a violência policial e a se defender, legalmente, dela. Está na rede. É um texto que deveria ser levado em conta, pois revela como as pessoas de bem se comportam nessa emergência.

Circulou uma notícia de que as favelas ocupadas por traficantes armados seriam considerados territórios hostis. É um equívoco, creio eu. As favelas são territórios amigos, ocupados por forças hostis. Parece um jogo de palavras, mas é uma diferença que implica em táticas e estratégias diversas.

A quarta modesta tese: como não foi realizada a intervenção completa, a Lava-Jato poderia avançar nos processos contra os políticos. Seria a maneira de combinar um ataque ao crime organizado em seus diferentes universos. Creio que fortaleceria o trabalho da intervenção.

Finalmente, algo que me parece também decisivo. Quem acha que é a única saída do momento, apesar de sua fragilidade, precisa ajudar.

O que significa ajudar? A sociedade já se move de muitas formas, inclusive, na internet, colaborando com aplicativos como Onde Tem Tiroteio, Fogo Cruzado e dezenas de outras iniciativas.

Isso vai depender também da intervenção. Se a visão for de aglutinar o esforço social, o general Braga precisa apresentar as linhas gerais de seu plano. Delas podem surgir uma indicação de como ajudar.

Compreendo que a esquerda diga que a violência foi superestimada pela mídia. O próprio general Braga derrapou no primeiro momento, ao afirmar que é muita mídia.

Ele tem razão, de certa forma. Sou um velho jornalista. No século passado, as notícias eram produzidas apenas por profissionais. Hoje, não: a estrutura industrial ampliou seu alcance diante de milhares de colaboradores filmando tudo. Quem filma os tiroteios no morro? E os assaltantes que tentam enforcar uma velha? Não são repórteres. Nenhum dos atos violentos foi desmentido. Não houve fake news, uma vez que caindo no circuito industrial os dados foram checados.

Não se trata, portanto, apenas de muita mídia. São muitos fatos. De qualquer forma, ganhariam as redes sociais.

É com eles que vamos. Ou não vamos.

"Dureza, general" - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA

Nos ombros do general Walter Souza Braga Netto repousa a mais espinhosa tarefa da presente quadra: dar um mínimo de consistência a uma megaoperação de marketing. Se havia alguma dúvida sobre a alma marqueteira da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, foi dissolvida pelas descaradas declarações do próprio marqueteiro de Temer, Elsinho Mouco, ao colunista Bernardo Mello Franco, de O Globo: “Viramos a agenda. (…) Hoje a maior preocupação do brasileiro é com a segurança pública (…). O Temer jogou todas as fichas na intervenção (…). Ele já é candidato”. Pode parecer muita ousadia a candidatura de alguém com pouco mais de zero de aprovação popular e rodeado pela imagem de malas de dinheiro nas mãos ou no apartamento de alguns de seus mais próximos amigos. Mas por que não se as pesquisas apontam para um primeiro lugar vago, um segundo com proposta de voltar trinta anos no relógio da história e um terceiro disputado por um aglomerado de liliputianos ciscando em torno de migalhas?


O general Braga pouco falou na cerimônia em que foi anunciada a intervenção. Astro da festa foi o ministro da Defesa, Raul Jungmann, secundado pelo ministro da Segurança Institucional da Presidência, general Etchegoyen. O general Braga era antes uma vítima da situação. Acabara de lhe cair nas mãos uma operação para a qual as únicas preparações foram uma reunião do presidente com os ministros de sua cozinha e outra com os marqueteiros. O silêncio lhe mascarava a perplexidade. Nos dias seguintes o silêncio perdurou, e com isso abriu-­se um fio de esperança. O general Braga faz seu serviço calado. É o oposto do loquaz ministro Jungmann. Raiou a esperança de a intervenção marqueteira quem sabe transubstanciar-se em resultados substantivos.

A intervenção põe muita pedra no caminho de um oficial levado a um rumo com o qual não sonhou

Tanques e uniformes verde-oliva nas ruas não são novidade para os cariocas. Sem falar do recurso ao Exército na Olimpíada e em outros grandes eventos, está em curso desde julho uma operação que, segundo o ministro Jungmann, teria vindo para “golpear o crime”. (Decorridos sete meses, ainda não golpeou.) O que se espera de uma intervenção no governo estadual vai muito além. Ela não se completará sem: (1) uma devassa nas polícias do Rio, alguns de cujos comandos, segundo o ministro da Justiça, Torquato Jardim, são cúmplices do crime organizado; (2) igual devassa na administração dos presídios, onde os chefes do tráfico gozam de respaldo e conforto para expedir ordens; e (3) com a ajuda das unidades de fronteira do Exército e da Polícia Federal, conseguir controlar o abundante afluxo de armas e drogas ao estado.


Contra o bom êxito da intervenção tem-se a evidência de que transferir o problema para a esfera federal não é panaceia. Exército e Polícia Federal são os responsáveis pela vigilância das fronteiras, e elas seguem porosas como sempre. Na questão dos presídios, duvida-se de algum progresso quando se lembra que até hoje não se conseguiu nem mesmo barrar a entrada de celulares. Temos ainda a escassez de recursos, que não é só do Rio, mas também do governo federal, para sustentar a intervenção. Quem vai pagar o quê, e como, era uma questão em aberto desde o anúncio da medida. Leve-se em conta, por fim, que o estado segue entregue ao sistema Sérgio Cabral, o príncipe da ladroagem, ora representado pelo triste Pezão. Para ser exitosa, faltará ainda à missão do general Braga imunizar-se contra os efeitos perniciosos irradiados da vasta parte da administração fora de seu controle. É muita pedra no caminho do nosso general calado, desviado numa esquina da vida para um rumo com o qual não sonhou. Dura será sua vida.
•••
Com a legenda “Militares inspecionam mochilas de alunos em operação em favela na Zona Norte do Rio”, a foto na primeira página da Folha de S.Paulo da quarta-feira 21, publicada na página 54 desta edição de VEJA, exibia em primeiro plano o cano do fuzil pendente do ombro de um soldado, visto de costas, e, ao lado, de frente para a câmera, uma bonita garotinha, negra, gordinha, de uniforme azul e branco, expressão séria e grandes olhos entre indagadores e amedrontados voltados para o soldado. Imagine-se cena similar com uma menina branca, os mesmos olhos indagadores e amedrontados, o mesmo soldado, o mesmo fuzil, numa escola do Leblon. A menção a “mandado coletivo de busca e apreensão” teria chance de causar comoção. Imaginem-se o leitor e a leitora por um momento na pele dos pais da garotinha da foto. Pensemos na garotinha, que teria 5 ou 6 anos. Pensemos nas mochilas sendo reviradas.

Sem vacas sagradas e sem sofismas - ADRIANO PIRES

ESTADÃO - 24/02

É preciso desmistificar os argumentos de que a privatização da Eletrobrás será prejudicial

Anos de Lava Jato e de barbeiragem na política energética já deveriam ter transformado a ideia de privatização da Eletrobrás num consenso nacional. Até quando os impostos que pagamos serão usados para manter estatal uma empresa que poderia perfeitamente ser privada, sem prejuízo nenhum para a União? Até quando viveremos a fantasia de que podemos bancar o refrão de que a Eletrobrás é “estratégica” e, como tal, tem que ser estatal?

Quando, como uma sociedade que supostamente quer progredir, colocaremos as demandas da saúde, da educação e da segurança verdadeiramente à frente dos slogans nacionalistas/populistas que acariciam nosso amor pelo Brasil apenas para obter vantagens privadas, na forma de cargos, contratos e influência?

O triste fato é que, mesmo com sua eficiente gestão atual, a Eletrobrás estatal jamais conseguirá realizar sua vocação: tornar-se uma das maiores e mais rentáveis empresas de energia do mundo. O Estado não é um bom empresário, e quem luta contra essa realidade hoje, em pleno século 21, vive um apagão intelectual de raiz ideológica, que tem impedido o progresso e a modernidade do País.

Dentro desse contexto, é preciso desmistificar os argumentos daqueles que defendem a ideia de que o Projeto de Lei (PL) 9.463/2018 que propõe a privatização da Eletrobrás será prejudicial ao setor elétrico e ao Brasil.

1. A privatização é entregar uma empresa estratégica a capitais privados:

Pelo PL n.º 9.463/2018, a União terá uma ação de classe especial golden share que, entre outros poderes, protege o modelo de corporação e garante a indicação de um membro do Conselho de Administração, além daqueles associados à participação societária da União, previstos na Lei das S.As.;

O PL também assegura a limitação de 10% do poder de voto – que, na prática, evita um controle da Eletrobrás por um único acionista.

2. A Eletrobrás será vendida por um valor muito pequeno:

A expectativa é de que a capitalização alcançará de US$ 3 bilhões a 4 US$ bilhões.

Essa será uma das poucas transações desse porte esperadas em escala mundial para 2018, importante para o equilíbrio fiscal brasileiro, mas o principal efeito não é o de pagar o atual almoço, e sim os futuros.

3. A privatização é uma medida desesperada e súbita:

A Eletrobrás que conhecemos hoje é resultado de um processo de privatização iniciado na década de 90 e interrompido antes do tempo, por causa do racionamento de 2001 e das eleições de 2002.

A privatização da empresa representa a retomada de uma agenda de eficiência para o setor elaborada há 20 anos, que leva o País na direção da modernidade, com o Estado passando a usar o Orçamento em educação, saúde e segurança pública e não em empresas estatais.

4. A privatização da Eletrobrás irá aumentar a conta de luz ao entregar a empresa a capitais privados:

A Eletrobrás privada passará a ser uma empresa eficiente promovendo melhor alocação de risco, queda no custo de transmissão, maior competição nos leilões de expansão da geração e transmissão de energia e, portanto, menores tarifas.

5. A Eletrobrás é uma empresa que pode dar lucro:

A Eletrobrás e uma empresa que acumula prejuízos nos últimos anos e quebrou com a MP 579/2012 do governo Dilma;

Hoje o Estado brasileiro, que tem um déficit público de R$ 159 bilhões e um déficit social incomensurável, teria de colocar algo como R$ 30 bilhões para a empresa ter uma chance de voltar a dar lucro. Faz sentido?

Enquanto o mundo está em ebulição com a transformação digital e inovações revolucionárias no campo da energia elétrica, aqui ainda existem grupos de privilegiados compostos por sindicalistas, políticos populistas e falsos defensores da privatização que insistem, em pleno século 21, na velha e desgastada tese de que as estatais são estratégicas e que estão sendo vendidas de graça aos privados. E preciso derrubar os sofismas sobre a privatização e mostrar à sociedade que o progresso, a modernidade e o crescimento só virão de maneira sustentada sem as vacas sagradas.

* DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE INFRAESTRUTURA (CBIE)

Magistratura é incompatível com sindicalismo - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 24/02
Distorções no auxílio-moradia de juízes podem ser corrigidas pelo STF, mas nada justifica que magistrados façam greve, algo incompatível com a função

A crise fiscal tem servido para que diversas corporações que usufruem privilégios na máquina pública se exponham, na defesa de benefícios inaceitáveis num país em que o Estado quebrou e onde há abissais desníveis de renda, de padrão de vida e de acesso à educação, saúde e segurança. O que faz perpetuar a desigualdade, em todos os níveis.

Os embates em torno da reforma da Previdência — que retornarão tão logo o próximo presidente seja forçado pela realidade a recolocá-la na agenda do Congresso — já ajudaram a revelar o desbalanceamento entre aposentadorias no setor privado (R$ 1.240, em média) e no setor público federal (R$ 7.583), entre outros incontáveis desníveis. Entende-se por que o servidor está na faixa do 1% mais rico da população.

Há, ainda, sérias distorções na remuneração de servidores de alto escalão, apenas formalmente enquadrados sob o teto salarial no setor público, de R$ 33,7 mil, o quanto recebem os ministros do Supremo. Adicionais diversos, não considerados para aplicação do teto, elevam o rendimento real de certas castas para muito acima disso. E até agora sempre ficou tudo por isso mesmo.

Um desses adicionais é o auxílio-moradia para juízes — mas não só —, de R$ 4.377, previsto em lei, regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, mas, com o tempo, deformado. Este penduricalho na magistratura deverá ser julgado pelo Supremo em 22 de março. Por isso, como acontece em outras corporações, há intensa mobilização da categoria para a manutenção do benefício.

É indiscutível que juízes, promotores, parlamentares etc. têm de receber remuneração condigna. Mas tudo precisa ser às claras, sem subterfúgios, dentro da lei. O que não pode é associações de magistrados, caso da que representa os juízes federais do Brasil, atuarem como sindicato, inclusive com propostas de greve.

Movimentos de paralisação no setor público costumam prejudicar basicamente a grande massa da população. Na Justiça, além disso, trata-se de uma agressão ao próprio sentido da magistratura.

Quem decide sobre demandas e conflitos na sociedade não pode agir em causa própria e, ainda por cima, em confronto com a lei e devido a motivos pecuniários — justo quando o Tesouro acumula sucessivos déficits. É inconcebível juízes paralisarem um serviço essencial. Quem julgará uma greve de magistrados?

É preciso não misturar a atuação meritória de juízes com aberrações que ocorrem no auxílio-moradia — um penduricalho que beneficia várias outras categorias no funcionalismo. Conceder o benefício a magistrados que têm casa própria na cidade em que trabalham, por exemplo, é uma distorção. O mérito da magistratura, ou de quem seja, não pode justificar desvarios administrativos e ilegalidades

Espera-se que o julgamento acabe com esses desvios e, é claro, o veredicto seja seguido por todos. É também uma oportunidade de se projetar luz nesses remendos, em todo o serviço público, para dar visibilidade à folha de salários da União, o segundo maior item de despesa do Orçamento. O contribuinte merece respeito.

Saia do Face você também - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 24/02

O idioma do Facebook é anticívico, nele não há lugar para a pluralidade


O hino espanhol não tem letra. Há pouco, Marta Sánchez cantou-o com uma letra de sua autoria, que menciona Deus e as cores da bandeira. Na Catalunha, prossegue –mas agora sob uma chuva ácida de críticas– a política de “imersão linguística” escolar: o catalão domina o currículo, deixando meras duas horas semanais para o espanhol. A Folha decidiu abandonar o Facebook. É uma questão de idioma –e de democracia. “Minha pátria é minha língua”, escreveu Fernando Pessoa. O idioma do Facebook é anticívico. Nele, não há lugar para a pluralidade.

A linguagem nunca é inocente. É o trauma da Guerra Civil que veta à Espanha, monárquica, mas democrática, preencher seu hino com uma letra. Um nacionalismo atrai o outro, seu oposto: a bandeira espanhola tremula nas sacadas de grandes e pequenas cidades, acompanhando o ritmo da agitação separatista na Catalunha e atestando o ressurgimento de uma chama que parecia extinta. A “imersão” catalã obedece à constatação de Pessoa. Crianças e jovens devem pensar num só idioma: ler jornais ou livros, navegar na internet, sintonizar em programas de TV exclusivamente em catalão. O Facebook funciona da mesma forma, mas por meio de algoritmos.

A linguagem veicula projetos políticos, ideológicos. A Groenlândia é a única região oficialmente bilíngue do mundo que marginaliza tanto quanto a Catalunha a principal língua nacional. Na ilha norte-atlântica quase não se ensina o dinamarquês. A razão, explicitada na justificativa dos regulamentos escolares: evitar que os habitantes dos povoados cedam ao canto de sereia da migração rumo às cidades. Você deve permanecer fechado na sua identidade, na sua concha de possibilidades, na sua caverna de certezas –eis o cerne da engenharia social linguística da Catalunha, da Groenlândia e do Facebook.

O conceito original do Facebook nasceu de descobertas da neurociência. Nosso cérebro adora “likes”: buscamos avidamente a aprovação, o reconhecimento e, se possível, a admiração dos outros. No início da vida, queremos “likes” dos pais; mais tarde, do círculo formado por nossos pares, que são amigos, colegas de trabalho ou “irmãos de fé” numa igreja ou partido. Contudo, entre uma etapa e outra, aprendemos o valor do “dislike”: a opinião diferente, a dissensão, a divergência proporcionam uma segunda reflexão –que, reiterando ou negando nosso primeiro impulso, sofistica nosso raciocínio. O “like” está arraigado na estrutura do cérebro; o “dislike”, tal como uma infinidade de instâncias intermediárias entre “like” e “dislike”, é fruto da cultura. Os algoritmos do Facebook operam no registro da negação da cultura.

O ideal dos separatistas catalães é que os habitantes da Catalunha sintonizem apenas a TV3, o canal público controlado por eles que oferece, dia e noite, sempre em idioma catalão, o alimento identitário do nacionalismo. O ideal do Facebook é que os usuários da rede social conversem exclusivamente no pátio murado de seus nichos de interesses, comportamentos e ideologias. A nicotina vicia. Escutar a reverberação das próprias ideias, dos próprios preconceitos, produz efeito semelhante. A Folha saiu do Face para resistir na trincheira do jornalismo.

No berço histórico do jornalismo encontra-se a celebração da divergência: o direito de publicar aquilo que não convém ao governo (veja bem: a qualquer governo). No berço do Facebook encontra-se um truque empresarial inspirado pela neurociência que semeia rancores e aduba o sectarismo. Durante a campanha eleitoral americana, o Facebook lucrou com a disseminação de “fake news” fabricadas pelos órgãos russos de inteligência. O episódio, porém, foi meramente circunstancial. A difusão de propaganda mentirosa pela rede social não depende de um pacto de ocasião com veículos russos, pois decorre da natureza do Facebook. Saia do Face você também.

Alheamento judicial - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 24/02

Não é a primeira vez que uma parcela de juízes federais se volta para dentro de seu mundo muito particular e, deliberadamente, ignora a realidade do País a que deveriam servir

Um grupo de juízes tenta arregimentar mais colegas de toga para uma greve da magistratura federal prevista para ocorrer no mês que vem. Trata-se de uma reação dos sindicalistas à decisão da ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de pautar para o dia 22 de março o julgamento das ações que tratam do auxílio-moradia. O STF decidirá sobre a constitucionalidade do pagamento do benefício a todos os juízes do País.

Cabe lembrar que o auxílio-moradia, que atualmente acrescenta R$ 4.378,00 mensais ao holerite dos magistrados, mesmo aos daqueles que residem em imóveis próprios nas comarcas onde atuam, é pago graças a uma decisão liminar concedida pelo ministro Luiz Fux em uma das ações que, no mês que vem, serão julgadas pelo plenário da Corte Suprema.

Ao conceder a antecipação de tutela, em 2014, Fux entendeu que os juízes federais fazem jus ao benefício por se tratar de “verba de caráter indenizatório”, compatível, segundo ele, com o regime de subsídios previsto pela Lei Orgânica da Magistratura (Loman). Verbas indenizatórias não são contabilizadas para efeitos do teto do funcionalismo público.

O ministro Luiz Fux também ressaltou em sua decisão liminar que o benefício já vinha sendo pago a outras categorias profissionais, como os membros do Ministério Público, os ministros de tribunais superiores e a magistratura dos Estados.

O movimento que propõe a greve dos juízes é articulado por um grupo restrito, composto por uma centena de magistrados. No entanto, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), que tem cerca de 2 mil associados, avalia se irá apoiar a paralisação. À luz do viés sindical que a associação resolveu adotar sem grandes melindres ultimamente, não é difícil inferir a resposta.

Em nota, a Ajufe diz que os juízes federais estão “no foco de poderosas forças em razão de sua atuação imparcial e combativa contra a corrupção e as desmazelas perpetradas na Administração Pública”. Ora, é difícil compreender por que juízes não tomariam as medidas que lhes são asseguradas por lei contra qualquer indivíduo ou organização que sobre eles desencadeie “poderosas forças”. Ao que parece, a alegação não passa do puído subterfúgio de reagir a todas as críticas que possam ser feitas aos imorais privilégios concedidos aos magistrados como um ataque direto à própria prestação jurisdicional. Nada poderia estar mais distante da verdade.

Não é a primeira vez que uma parcela de juízes federais se volta para dentro de seu mundo muito particular e, deliberadamente, ignora a realidade do País a que deveriam servir. Sobre alguns desses clubes de juízes deve recair uma parcela da responsabilidade pelo fim da tramitação da imprescindível reforma da Previdência, pelo menos neste ano. Em nome da manutenção de um regime previdenciário injusto e anacrônico, parte dos juízes se engajou em uma forte campanha contra a reforma que tem por objetivo não só tornar o primado da igualdade de todos perante a lei uma realidade no País, mas salvar as contas públicas e permitir que futuras gerações de brasileiros possam viver em condições melhores.

Ao cogitar entrar em greve e privar os cidadãos de um serviço essencial – razão pela qual a “paralisação” é proibida por lei, ainda que a ela se deem nomes pomposos como “valorização da carreira” ou “movimento em defesa da Justiça” – tão somente para defender a manutenção de um privilégio que não se coaduna mais com a realidade do País, esse grupo de juízes federais se mostra, mais uma vez, alheio aos ventos de mudança que em boa hora passaram a soprar no Brasil. Já não há mais lugar para disparates como uma greve de juízes para evitar um julgamento.

A mesma turma que diz estar sob ataque de “poderosas forças” deveria ser a primeira a não acionar essas forças contra instituições como o STF. Não pode ser interpretada de outra forma a ameaça de greve dos juízes federais logo após a inclusão em pauta do julgamento de ações que podem contrariar interesses de classe.

Miséria venezuelana - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 24/02

Pobreza se generaliza em meio à recessão catastrófica criada pelo regime chavista


Estarrecedora, ainda que não surpreendente, pesquisa recém-divulgada sobre as condições de vida na Venezuela dá novas medidas da tragédia provocada pelo regime ditatorial de Nicolás Maduro.

A investigação —a cargo da reputada Universidade Católica AndrésBello (Ucab), com uma metodologia semelhante à da amostra de domicílios do IBGE brasileiro— retrata uma população acuada pela hiperinflação, assustada com a violência e cada vez mais disposta a abandonar o país.

Quase 9 em cada 10 domicílios não dispunham, em meados do ano passado, de renda para comprar uma cesta básica (que inclui alimentos, higiene pessoal, mensalidade escolar e outros itens). A deterioração dos padrões de vida se mostra vertiginosa: em 2014, a parcela, já altíssima, de venezuelanos nessa situação era de 48%.

É um resultado do processo descontrolado de alta dos preços, a uma taxa que, segundo estimativas recentes, tende a passar dos 10.000% neste ano —em meio a uma recessão catastrófica que adentra seu quinto ano.

A segurança pública é outro flagelo. Um em cada cinco venezuelanos declarou ter sido vítima de um crime no ano anterior, mas 65% não formalizaram queixa por falta de confiança nas autoridades.

Na ressaca da bonança petroleira, a maioria das propaladas “misiones”, programas sociais do chavismo, praticamente desapareceu —caso da versão local do Mais Médicos. No seu lugar, criaram-se esquemas emergenciais de distribuição de alimentos, aviltados por corrupção e manipulação política.

Diante de tamanho descalabro, tampouco é surpresa que os venezuelanos deixem o país em massa, fenômeno sem precedentes na sua história. A pesquisa da Ucab estima que 815 mil tenham emigrado nos últimos cinco anos.

O principal destino do êxodo é a Colômbia, para onde rumaram 600 mil pessoas, segundo Bogotá. Em que pese o caos em Boa Vista (RR), o Brasil recebe menos gente do que países pequenos, como República Dominicana e Panamá.

Diante do quadro desesperador, chega a ser espantosa a permanência de Maduro —que, incapaz de governar de fato, tem como único objetivo perpetuar-se no poder.

Rejeitado pela maioria da opinião pública, abandonou o autoritarismo populista e popular de Hugo Chávez para estabelecer uma ditadura sem máscara, a um custo humanitário que não para de crescer.

‘Eu não sou candidato’ - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 24/02

Não é aceitável que partam do governo sugestões de que atos de Temer tinham por objetivo alimentar candidatura que não existe


Desde que assumiu a Presidência da República, em maio de 2016, com o afastamento de Dilma Rousseff, Michel Temer vem reiteradamente afirmando que não é e não será candidato à reeleição. Isso deveria bastar para encerrar as insistentes especulações sobre o suposto interesse eleitoral de Temer – muitas delas cultivadas pelo próprio entorno do presidente –, pois tal falatório só aproveita a quem pretende criar embaraços ao governo no momento em que este se desdobra para entregar um país minimamente governável para a próxima administração. Como o falatório continua, no entanto, o presidente Temer tornou a vir a público para dizer com todas as letras, de novo, que não é candidato à reeleição.

“Eu não sou candidato”, disse Temer em entrevista à Rádio Bandeirantes. Diante da insistência do entrevistador, que queria saber se aquela resposta era definitiva ou se poderia mudar no futuro, a depender das circunstâncias, Temer respondeu em português claro: “Eu não serei candidato”.

Não há diferença entre essas respostas e a que ele deu em maio de 2016, ainda na condição de presidente interino, quando afirmou, em entrevista à TV Globo: “Eu estou negando a possibilidade de uma eventual reeleição”. Um ano mais tarde, em entrevista coletiva, declarou que era “zero” a possibilidade de tentar a reeleição, ainda que houvesse, no futuro, clamor popular por sua candidatura.

Em nenhum momento, portanto, se ouviu da boca do presidente qualquer afirmação ou mesmo insinuação de que ele poderia ser candidato à reeleição. Essa hipótese só existe e se sustenta, a despeito das negativas do maior interessado, em razão da insistência com que os áulicos do Palácio do Planalto, cada qual com seus objetivos pessoais, fazem circular fuxicos e balões de ensaio sobre as imaginárias pretensões de Temer.

O último a tocar no assunto foi o chefe da Secretaria de Governo, ministro Carlos Marun. Em entrevista à Veja, Marun, a despeito de admitir que Temer “continua a dizer que não quer” tentar a reeleição, afirmou que a candidatura do presidente é “necessária”, pois assim seria possível aprovar a reforma da Previdência no próximo mandato. O ministro acrescentou que a decisão de Temer de intervir na segurança pública do Rio, que a oposição denuncia como um ato eleitoreiro, “será, sim, um fator determinante nas próximas eleições”.

Pelo visto, nem todos entenderam o pito que o presidente mandou passar naqueles que falam mais do que devem a respeito das suas decisões neste momento e de seus supostos planos para as eleições. Como se sabe, depois que o marqueteiro Elsinho Mouco, um dos responsáveis pela propaganda do governo, disse que Temer “já é candidato” e que “o Temer jogou todas as fichas na intervenção”, o porta-voz da Presidência, Alexandre Parola, esclareceu que “assessores ou colaboradores que expressem ideias ou avaliações sobre essa matéria não falam, nem têm autorização para falar, em nome do presidente”.

É evidente que, em política, promessas e garantias não valem grande coisa, mas, ao dizer, de saída, logo ao assumir a Presidência, que não era candidato a nada em 2018, Temer construiu as condições que lhe permitiram se dedicar a uma agenda crucial de reconstrução do Brasil, depois da tragédia lulopetista. Ciente de que sua enorme impopularidade dificilmente seria revertida a tempo de viabilizar uma candidatura à reeleição, Temer pôde se dedicar sem embaraços à dura tarefa de aprovar as reformas que estancaram a violenta crise econômica e administrativa legada por Dilma Rousseff.

O relativo sucesso dessa empreitada acalenta legítimas aspirações eleitorais dentro do governo, a começar pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que fala abertamente de sua candidatura. Assim, é até natural que surjam especulações sobre um eventual desejo do presidente Temer de se reeleger. O que não é aceitável é que partam de dentro do governo sugestões de que os últimos atos do presidente, de enorme gravidade, tinham por objetivo alimentar uma candidatura que simplesmente não existe.

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Tudo pelo crime - O Exército está proibido de combater os criminosos no Rio de Janeiro - J.R GUZZO

REVISTA VEJA
O Exército está proibido de combater os criminosos no Rio de Janeiro
Cerca de 2,6 mil integrantes das Forças Armadas e das polícias militar e civil participam de uma mega operação para prender 26 pessoas, apreender dois menores e cumprir 34 mandados de busca e apreensão em Niterói (RJ) 


Está tudo perfeitamente correto com a intervenção do Exército no Rio de Janeiro, mesmo porque não há nada que os militares possam fazer a respeito ─ receberam ordens legais, aprovadas por vasta maioria de votos no Congresso, para patrulhar as ruas da cidade, e não poderiam recusar-se a cumpri-las. Mas está tudo errado com a desordem criada na segurança jurídica no Brasil pela ação conjunta de governo, deputados e senadores, juízes e procuradores, ministros dos tribunais superiores e quem mais tem alguma coisa a ver com a aplicação da lei neste país. Esta desordem, como é bem sabido por todos, é hoje o grande incentivo ao crime: transformou o direito de defesa num Código Nacional da Impunidade. Essa situação fornece tantos privilégios aos criminosos, e coloca obstáculos tão grandes à sua punição, que acabou por dissolver a autoridade pública, as leis penais e o sistema Judiciário, hoje humilhados diariamente pelo crime e impotentes para proteger os direitos do cidadão que os bandidos violam como bem entendem. Criou-se um estado de quase anarquia. Aí não há Exército que pode resolver ─ nem o brasileiro e nem o dos Estados Unidos, com o seu efetivo de 1,3 milhão de homens, o seu orçamento de 600 bilhões de dólares por ano e o seu arsenal inteirinho de bombas atômicas.

O Exército brasileiro não pode resolver o problema porque tem de respeitar as leis ─ e as leis criadas há anos pelos donos do poder impedem que a força armada cumpra a missão que recebeu. O resumo da história é o seguinte, para quem não quer passar o resto da vida discutindo o assunto: a tropa enviada ao Rio de Janeiro está legalmente proibida de combater o inimigo contra quem foi despachada. Muito simplesmente, não há no momento para o Exército enviado à frente de combate as “regras de engajamento”. Como uma força militar pode trabalhar desse jeito? Qualquer exército decente do mundo tem suas regras de engajamento ─ até uma tropa ONU em missão de paz. Do contrário, é um ajuntamento de homens com armas na mão. Essas regras são o conjunto de instruções precisas sobre o que os soldados e oficiais devem ou não devem fazer quando entram em ação. Uma das principais é atirar no inimigo. Não se trata de sair dando tiro por aí, mas também não é uma opção em aberto. Um sujeito que porta um fuzil automático no meio da Avenida Brasil para assaltar um caminhão de carga, por exemplo, ou desfila armado pelas favelas, é um inimigo ─ e, portanto, um alvo. Ou não é? Aqui, pela regra, não é. Pelas nossas leis, não há inimigo. Conclusão: o Exército está no meio de uma guerra no Rio, mas nossas leis e tribunais dizem que a tropa do outro lado encontra-se sob a sua benção.

Nossos soldados, assim, se veem na extraordinária situação de não poder atirar no agressor ─ não têm, para tanto, a autorização da lei, nem sua proteção. É como se numa guerra o soldado que matasse o inimigo armado fosse depois levado ao tribunal de júri e processado por homicídio. Quer dizer: o Exército foi chamado para combater o crime, mas está impedido de combater os criminosos. Não tem “poder de polícia” ─ na verdade, tem menos liberdade que a PM do Rio. Não pode prender sem mandato judicial. Não pode revistar um prédio sem licença do juiz. Serve para ficar na rua, aparecer em fotos e fazer os bandidos tirarem umas férias, até a hora de ir embora e entregar o território de novo para eles. Enquanto isso, soldados e oficiais têm de rezar para não precisarem atirar em legitima defesa; vão dizer, aí, que o Exército matou “um civil”. É uma espécie de falência mental coletiva. Para a mídia, os ministros do Supremo, os pensadores políticos e por aí afora, não há assaltantes nos morros do Rio de Janeiro; há civis. É o triunfo do crime, para a tranquilidade dos defensores da nossa democracia.

Os juízes são os verdadeiros sacerdotes nas sociedades modernas; nem podem fazer greve nem podem ser líderes sindicais - REINALDO AZEVEDO

REDE TV/UOL - 23/02

É estupendo que a Associação de Juízes Federais (Ajufe) tenha decidido paralisar suas atividades por um dia em sinal de protesto — e advertência — contra matéria a ser votada no Supremo, que pode extinguir o auxílio-moradia da categoria. Se assim decidir o tribunal, é evidente que o benefício para os juízes estaduais estará também com os dias contados. E caberá, entendo eu, que o processo legislativo se encarregue de definir os casos excepcionais que farão jus ao pagamento. Uma coisa é certa: a farra em curso não pode continuar. E isso vale para o auxílio-moradia e todos os outros penduricalhos.

Paralisação de juízes, que corresponde ao aceno por uma greve? É um troço vergonhoso. Mais de uma vez, já afirmei aqui que não consigo nem mesmo conceber associações de magistrados de caráter sindical. Não tem jeito. Acho que a coisa vai contra a natureza mesma da função.

A Constituição e as leis procuram ser claras na sua generalidade — nem sempre conseguem, é verdade. O juiz existe porque lhe cabe ver cada caso à luz da norma, e isso requer sempre dose considerável de arbitrariedade nas duas pontas: seja na interpretação dos códigos, seja na leitura das ocorrências que estão sob sua apreciação. Isso lhe confere um poder fabuloso. É assim é com todos os magistrados, estaduais ou federais, de qualquer instância.

Deveria haver, assim, em todo juiz um ermitão, um homem solitário, torturado — acho que cabe a palavra — pela obsessão de ser justo, para que o arbítrio que ele exerce esteja o mais próximo possível do espírito das leis e da realidade factual e o mais distante possível de suas paixões, de sua ideologia, de sua visão de mundo, de suas idiossincrasias. Um juiz, se querem saber, deveria ser o verdadeiro sacerdote da sociedade. Não por acaso, na origem das culturas, era a autoridade religiosa que exercia esse papel. A evolução das sociedades fez com que os sacerdotes ficassem, então, restritos ao credo que prodigalizam. Restou aos juízes o despir-se das paixões.

Assim, soa-me incompreensível que juízes se juntem em associações, em sindicatos. Com que propósito senão a defesa da própria corporação? Tal prática toca nas raias do absurdo quando uma associação de juízes decide nada menos do que pôr a faca no pescoço do Supremo em defesa de um privilégio tão inaceitável como inexplicável.

A pressão imediata é dirigida contra o Supremo, mas a bucha de canhão ou o boi de piranha dos senhores togados é o povo brasileiro. Repito agora o que já escrevi dezenas de vezes neste blog: numa democracia, a greve de servidores públicos ou de trabalhadores que prestam serviços de natureza pública deveria ser simplesmente proibida, sob pena de demissão sumária. As coisas são simples assim. O patrão do servidor é o povo. Quando funcionários públicos decidem fazer greve, estão chantageando a população, em especial os mais pobres, porque, afinal, são os que têm menos recursos para enfrentar os contratempos decorrentes da paralisação.

Dado que ser funcionário público é uma escolha — e isso vale também para os juízes —, não uma imposição da natureza, não há justificativa possível para a greve. Não se pode chantagear toda uma população em razão de um interesse que não foi satisfeito ou de uma reivindicação que não foi atendida.

É curioso! Até outro dia, boa parte da população estava convencida de que os males do Brasil estavam todos concentrados no Congresso e no Executivo. Esses dois Poderes estariam carcomidos pela corrupção e por interesses mesquinhos, e juízes e procuradores se apresentavam como os demiurgos, os salvadores, a palmatória do mundo. Bastou que viessem a público os privilégios de que gozam os senhores magistrados e os membros do Ministério Público, e assistiu-se, então, a uma explosão de vigarice intelectual e desculpas esfarrapadas.

As duas categorias, sempre tão solertes em apontar o dedo contra a cara de deputados, senadores, ministros, governadores e presidente da República, resolveram reagir da pior maneira possível: tudo faria parte de uma grande orquestração conspiratória porque ambas estariam ocupadas em combater a corrupção.

Assim, que importa que os bilhões torrados em penduricalhos como auxílio-moradia, auxílio-creche, auxílio-paletó, auxílio-alimentação, auxílio-pós-graduação não sejam nem mesmo tributados e superem em muito o tal dinheiro recuperado pela Lava Jato? Os doutores não estão nem aí. Querem aplicar a lei com o rigor de Savonarolas da República, mas só para os membros dos dois outros Poderes. Eles próprios ficariam imunes não apenas à sanha moralista — por esta, não tenho nenhuma simpatia —, mas também à moral.

Consta que a ministra Cármen Lúcia, que costuma fazer a política dos juízes, não gostou da ameaça da Ajufe. A coisa teria caído mal no Supremo como um todo. Já vi e ouvi a doutora a fazer reptos apaixonados contra aqueles que, segundo ela, afrontam decisões da Justiça.

Vamos ver o que diz no momento em que juízes decidem afrontar o próprio Supremo.

E uma nota para encerrar: acho que procuradores e juízes andam indo pouco ao supermercado e não têm recorrido aos táxis e aplicativos — bem, de ônibus é que não andam mesmo. A reputação dos doutores não está melhor que a dos políticos. A sorte é não dependerem do voto popular…


Fugindo do paraíso - FERNANDO GABEIRA

ESTADÃO - 23/02

A esquerda não pode encarar a realidade dos venezuelanos saindo em massa de lá


No século passado, tive a oportunidade de cobrir a chegada dos refugiados do comunismo às praias de Brindisi, na Itália. Vinham da Albânia, sedentos de liberdade e de algum conforto material. E agora testemunho o movimento dos refugiados do socialismo do século 21. Como o drama se desenrola no Brasil, tive a oportunidade de seguir sua trajetória em três viagens à fronteira.

Na primeira entrei na Venezuela. Nas duas últimas concentrei-me em Boa Vista, Pacaraima e no trecho de 200 quilômetros da BR-174 que liga a fronteira à capital de Roraima.

O Brasil ainda não se deu conta desse drama na sua amplitude. Cerca de 180 crianças venezuelanas entram todos os dias no País, na maternidade Boa Vista nascem quatro por dia. E há muitas mulheres grávidas. Toda uma nova geração de brasileiros está surgindo desse drama histórico.

Índios waraos, que desceram da Bacia do Orenoco, vieram em massa para o Brasil. Estão alojados em Pacaraima e em Boa Vista. No ano passado estavam na rua. Eram um perigo para eles e também para a pequena cidade brasileira. Muitos tinham doenças de pele, pelas circunstâncias em que vivam, amontoados na rodoviária e nas cercanias. Hoje estão em abrigo, ainda em situação precária. É praticamente toda uma etnia que se mudou para cá. O que fazer diante disso?

A novidade desta última viagem é que o drama ficou mais intenso, famílias dormindo no chão, crianças revirando latas de lixo, mulheres se prostituindo na capital. Há também nesse sofrimento muita iniciativa, muita gente vendendo picolé, cortando cabelo, desenhando retratos, enfim, buscando uma forma de atenuar a miséria.

Hoje, são os próprios habitantes de Roraima que alimentam os venezuelanos. Mas isso não significa a inexistência de rejeição. As pesquisas indicam um mal-estar crescente, uma xenofobia latente num Estado que já teve os maranhenses como bode expiatório num momento em que se deslocaram em massa para Roraima.

O governo lançou um plano de ordenamento da fronteira com a Venezuela. Assim como a intervenção no Rio, é uma ideia à espera de um plano concreto. O princípio é correto: cadastrar e distribuir os venezuelanos racionalmente pelo País.

Pelo menos em teoria, aprendemos com a história dos haitianos no Acre. Eram em menor número, mas ainda assim foi preciso mandá-los de ônibus para São Paulo, sem nenhum aviso ou preparação.

No caso dos venezuelanos, no êxodo em massa está embutida também uma fuga de cérebros. Não há indicações precisas, mas há quem calcule em 20% o índice de profissionais com curso superior.

Desde o ano passado eu estranho o silêncio das forcas políticas brasileiras. Naquela época, já era possível prever esse desdobramento e, mais ainda, é possível agora afirmar que não existe nenhuma solução no horizonte.

Os venezuelanos vão continuar saindo em massa do país e as eleições anunciadas por Nicolás Maduro, boicotadas pela oposição, devem fortalecer a ditadura bolivariana. Os instrumentos diplomáticos do continente, Mercosul, Unasul, OEA, parecem incapazes de encontrar saída.

O Brasil hesita em internacionalizar o problema, embora a ONU já tenha mostrado simpatia pelo plano teórico de Temer. A internacionalização dificilmente resolverá pela América do Sul um problema que é muito do próprio continente.

A Europa está sobrecarregada com o êxodo pelo Mediterrâneo. Os Estados Unidos são governados por Trump, que não tem simpatia pelos refugiados.

O plano de ordenamento da fronteira, segundo os militares, depende de segurança jurídica. Ali podem trabalhar contra a entrada de drogas e armas. Mas não podem legalmente tratar de migração.

A fronteira continua porosa. Existe algo muito difícil de combater, técnica e politicamente: o contrabando de gasolina. A 174 está cheia de carcaças de carros queimados, muitos deles tentando escapar da polícia com uma altamente inflamável carga desse combustível. Documentei como os carros evitam a aduana e entram por um caminho alternativo trazendo a gasolina, que no lado da Venezuela é tão barata que dez centavos de real dão para encher um tanque. No lado brasileiro é vendida por R$ 1,50 o litro.

É politicamente difícil combater o contrabando, pelos simples fato de que ele faz parte da vida de Pacaraima: a cidade não tem posto de gasolina. Em termos de coerência, o Brasil só pode combater esse tipo de contrabando se abrir um posto em Pacaraima. A cidade se organiza como se isso não fosse necessário.

São 400 quilômetros de ida e volta entre Pacaraima e Boa Vista. É preciso encher o tanque na capital até transbordar ou, então, fazer o jogo do contrabando. Qual o sentido de tirar proveito de um país em ruínas? Jogar no quanto pior, melhor? Essa tese pertence ao outro lado, o de Maduro e seus apoiadores no mundo.

O êxodo entrou no noticiário talvez enfatizando apenas o sofrimento, sem atenção para os milhares de estratégias pessoais de sobrevivência, uma dimensão que é possível sentir nas descrições do escritor Primo Levi do campo de concentração em Auschwitz.

Mas na política mesmo ainda não descobriram o que se está passando por lá, exceto pelo voz desgastada de Romero Jucá. Impressionante como tanto sofrimento some no radar de Brasília. A condição humana escapa à esquerda quando as pessoas fogem do que ela considera um paraíso ou, como Lula, uma democracia em excesso. A esquerda não pode encarar essa realidade porque abalaria sua autoimagem. Entre abrir a cabeça ou se fechar para o mundo, já fez sua opção.

Felizmente, é um drama que não tem repercussão eleitoral, a não ser num universo de meio milhão de habitantes de Roraima. Com as paixões em fogo brando talvez seja possível responder com serenidade a essa tragédia, mesmo sabendo que o horizonte será mais sombrio.

*Jornalista

Uma economia aberta não combina com autoritarismo e descaso social - PEDRO LUIZ PASSOS

FOLHA DE SP - 23/02

Repúdio a preconceitos e discriminações é um dos principais valores da filosofia liberal



A longa crise econômica que só agora estamos superando destruiu riquezas, empregos e parte de nossa autoestima, mas deixou certo consenso sobre as raízes dos grandes problemas nacionais.

Hoje parece certo que, independentemente da coloração ideológica dos próximos governos e dos discursos de conveniência de alguns candidatos, a prioridade é reconstruir o Estado brasileiro.

Esse Estado reformado terá que assumir feições enxutas, pautado pela eficiência, e se dedicar mais à definição de políticas estratégicas e menos a atividades que podem, perfeitamente, estar sob a responsabilidade de empresas privadas e organizações da sociedade.

Sua atuação deverá zelar pela regulamentação adequada e pelo aprimoramento das instituições para assegurar a livre concorrência e a igualdade de oportunidades para todos. O grande desafio, para tanto, requer a modernização do Estado e a abertura célere da economia.

Essa é a grande transformação que se faz necessária. Ela trará benefícios ansiados pela sociedade. Mas exigirá uma profunda revisão da relação entre os entes públicos e os interesses difusos da sociedade, a iniciativa privada e os grupos de pressão, especialmente das corporações de funcionários, que desfrutam de largo poder no interior do Estado.

Num país marcado pelo atraso em larga escala e pelo protecionismo de setores empresariais, essa agenda permitirá o avanço do desenvolvimento econômico, a redução da desigualdade e o progresso social. O leitor identificará aí alguns dos pilares do liberalismo econômico.

Nada estranho em tal conclusão, uma vez que o modelo intervencionista e dirigista do período recente mostrou sua incapacidade em promover políticas públicas eficazes em campos que atendam o interesse geral da sociedade, e não apenas de poucos grupos particulares.

Temos observado, no entanto, um bloqueio dessa formulação moderna e progressista no debate político. Os avanços da agenda econômica liberal têm sido associados, de modo politiqueiro, ao desinteresse pelas demandas sociais e à regressão ao conservadorismo dos costumes.

Tal confusão, sem nenhum lastro na realidade, é propagada muitas vezes de forma deliberada e oportunista pelos que apelam a discursos populistas, de um extremo a outro do arco ideológico, para iludir o cidadão.

Uma sociedade com relações sociais livres de preconceitos e discriminações é um dos valores mais caros à verdadeira filosofia liberal, correspondendo a traços fundamentais de nossa cultura, que tem na miscigenação e na diversidade sua força mais bela.

Atitudes autoritárias, que mal disfarçam o ranço do preconceito de todos os matizes, não ensejam o desenvolvimento que almejamos, ao contrário do que prega quem insiste em apresentar soluções fáceis e monolíticas para problemas complexos e multifacetados.

A visão reacionária ameaça importantes avanços já conquistados, como a consciência ecológica formada com imenso esforço. Além de premissa para a qualidade de vida, o respeito ao ambiente é fator intrínseco à inovação e ao crescimento econômico, como demonstram o desenvolvimento de novas formas de energia e do carro elétrico.

Não há contradição entre a dinâmica de uma economia aberta, moderna, progressista e inclusiva e uma sociedade pautada pela tolerância, liberdade de expressão, respeito à diversidade e evolução dos costumes. As duas visões são intercomunicantes e se tonificam mutuamente. Colocá-las em campos opostos é uma confusão que não pode prosperar.

Falta o dinheiro da intervenção no Rio - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 23/02

Governo diz que ainda analisa necessidades; Exército quer verba mais ampla para ação e reformas

HÁ MUITAS teorias de críticos e adeptos da intervenção na segurança do Rio. Há muita ambição política no governismo e muita preocupação no Exército de que a ação seja "ampla". Mas não se sabe quase nada de quanto dinheiro será preciso e de quanto haverá.

Os primeiros planos e os comandantes da intervenção devem ser anunciados na semana que vem, mas a operação não se limita a movimentar ainda mais tropas e veículos das Forças Armadas, não apenas do Exército, o que por si só já encarece a logística bem além do previsto pelo Orçamento federal. Os militares querem reequipar minimamente a polícia do Rio.

No Ministério da Fazenda, o que se diz ainda é que as necessidades de recursos adicionais serão analisadas. Logo, a verba extra para a intervenção no Rio ainda não existe. O orçamento do Exército está no osso.

Militares do Exército dizem que alguns investimentos nem são nada extravagantes, em termos de custos e necessidade, como equipar a polícia de veículos que possam circular. No entanto, é óbvio que o governo do Rio não tomava providências, por desordem e porque não tem dinheiro para comprar pneus, incapaz de colocar todos os salários do Estado em dia. Até agora, não há conta do custo desses extras, na verdade básicos.

Oficiais do Exército dizem que há um círculo vicioso de degradação profissional na Polícia Militar do Rio.

Na opinião desses militares, a tropa seria tida como indisciplinada até segundo padrões de qualquer departamento civil de governo, "paisano", que dirá para uma organização militar. É desorganizada, na rotina burocrática cotidiana ou na disposição de efetivos policiais pela cidade do Rio. Além do mais, a hierarquia é muito relaxada.

A falta de equipamentos básicos, como veículos e equipamentos de proteção, além de prédios e quartéis degradados, baixa ainda mais o moral da tropa, o que por sua vez contribui para a desordem, na opinião de oficiais do Exército baseados no Rio. O número grande de mortes de PMs e a falta de sentido de missão dos policiais seriam o problema de base, porém. Mas falta dinheiro para criar outros fundamentos.

Como se sabe, Rodrigo Maia deu uma canelada em Michel Temer ao dizer que o presidente da República assuntou um aumento de impostos a fim de financiar a segurança pública. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, diz em público que essa ideia jamais foi apresentada a ele.

Seja lá o que o presidente tenha dito, o presidente da Câmara sabia o que estava fazendo, por um motivo e outro. Estava, claro, demonstrando sua irritação por Temer ter roubado a sua "agenda positiva", mas não apenas. Estava expondo o fato de que a pindaíba é um problema da intervenção no Rio.

O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, teria dito a Maia nesta quinta-feira (22) que está muito preocupado com a indefinição do governo sobre recursos para a operação, apesar da clareza da ordem de Temer sobre o assunto. Pelo menos isso era o que vazavam parlamentares próximos do presidente da Câmara. Maia quer recuperar sua agenda perdida, até porque deve se lançar pré-candidato a presidente da República agora em março.

Por enquanto, tem mais política do que tutu.

Impunidade no forno - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 23/02


Como o Congresso fracassou e teve de recuar em suas tentativas de “estancar a sangria” da Lava Jato, esse papel pode ser exercido, nada mais, nada menos, pelo Supremo Tribunal Federal. Basta o plenário tomar duas decisões: restringir o foro privilegiado dos políticos com mandato e acabar com a prisão após condenação em segunda instância.

Essas duas decisões, somadas, significam que muitos criminosos de colarinho branco já presos serão soltos e muitos dos que estão na bica para ser presos já não serão mais. Uma equação perfeita cujo resultado tem nome: impunidade.

Como funciona? Assim: 1) o Supremo formaliza o fim do foro privilegiado e empurra os políticos para a primeira instância, em seus redutos eleitorais; 2) o processo praticamente recomeça do zero e pode demorar anos até o acusado ser julgado e condenado pelo juiz e depois pelo TRF; 3) e, com a revisão simultânea da prisão em segunda instância, pelo próprio Supremo, não acontece nada com o réu. Ele vai continuar entrando com recurso atrás de recurso, livre, leve e solto.

Isso tudo com um efeito colateral bastante forte na Lava Jato ou em qualquer investigação, em qualquer tempo, sobre corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Sabem qual? O fim, objetivamente, das delações premiadas que foram fundamentais para desvendar esquemas complexos como o do saque na nossa Petrobrás. Qual envolvido vai fazer delação, sabendo que não corre o risco iminente de prisão?

O fim da prisão após a segunda instância beneficia diretamente o ex-presidente Lula. O fim (ou revisão) do foro privilegiado interessa a todos os políticos com mandato e investigados pelo Supremo. As duas coisas, somadas, dizem respeito a todos eles. Logo, já há especialistas fazendo a seguinte conexão: os antipetistas salvam a cabeça de Lula para salvar todos os aliados; os petistas salvam todos os adversários para salvar a cabeça de Lula. Um “acordão” ou, numa linguagem mais polida, uma “convergência” das forças políticas e dos grandes partidos.

Pode até ser, mas não parece pura coincidência o movimento dos ministros Edson Fachin e Dias Toffoli. Fachin, relator da Lava Jato, delegou ao plenário o pedido de Habeas Corpus preventivo para Lula não ser preso, criando condições para a previsão de prisão após segunda instância. Ato contínuo, Toffoli anunciou que está pronto para julgar a revisão do foro privilegiado, já virtualmente definida, por 7 dos 11 ministros, mas nunca proclamada porque Toffoli pediu vista mesmo após formada a maioria do plenário.

Uma peça-chave é o ministro Gilmar Mendes, que reúne duas condições curiosas: a de principal anti-Lula do Supremo, mas pronto a mudar seu voto e salvar o petista da prisão. Gilmar não tem proximidade com Fachin, mas Toffoli foi advogado do PT, indicado por Lula para o STF e tem bom diálogo com Gilmar e com Fachin.

Especialistas estranharam detalhes fora da praxe quando Fachin despachou o HC de Lula para o plenário: a rapidez (recebeu, despachou); não esperou a análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ); não pediu informações para os juízes do caso; não solicitou parecer da Procuradoria-Geral da República (que se manifestou apesar disso).

No mesmo embalo, Fachin liberou para o plenário também dois outros pedidos de HC para os quais tinha pedido vista no ano passado na segunda turma. Soou assim: não estou privilegiando o HC de Lula...

Diferentemente da revisão da prisão em segunda instância, o fim do foro privilegiado é bem popular. Mas aos dois, juntos, significam que os processos dos poderosos vão rolar, rolar e rolar, de recurso em recurso, e acabar justamente no Supremo. Só que 20 anos depois...

Autonomia para o Banco Central - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 23/02


Entre as 15 propostas que o governo Temer quer ver aprovadas pelo Congresso está a da autonomia operacional do Banco Central. Embora não tenha a urgência sugerida pelo governo, esta é matéria cuja aprovação terá impacto decisivo no longo prazo, porque aumentará a confiança no Banco Central.

Por que essa autonomia? O Banco Central já não tem autonomia suficiente para exercer sua função? E o que pensar dessa ideia de conferir duplo mandato para o Banco Central: o de controlar os juros tendo como objetivo não só combater a inflação, mas, também, garantir mais emprego?

O Banco Central é o cão de guarda do maior ativo dos brasileiros: sua própria moeda. Se não tiver autonomia para exercer sua função, serão os políticos que passarão a comandar a guitarra. E o resultado disso a gente já sabe.

No momento, o Banco Central opera com autonomia informal. Nem o atual presidente da República nem o ministro da Fazenda se metem na política monetária, o único instrumento que o Banco Central tem para o combate à inflação.

Quando alguém diz que o Banco Central controla a política de juros isso tem de ser entendido como resultado de sua política e não como o mecanismo a ser acionado. O que o Banco Central faz é ajustar o nível de moeda de modo que seu preço, que são os juros, fique nos níveis pretendidos.

Mas nem sempre o Banco Central do Brasil operou com autonomia de fato, já que a formal não existe. Em 2011 e 2012, durante o governo Dilma, por exemplo, o Banco Central derrubou os juros apenas porque a presidente assim exigiu. E deu no que deu, os preços dispararam com o aumento de despejo de moeda e, sob ameaça de perder de uma vez o controle da inflação, o Banco Central teve de reverter sua política.

Para garantir autonomia formal é necessário o cumprimento de duas condições: mandatos fixos dos seus diretores, sem possibilidade de demissão, a não ser por justa causa; e mandatos não coincidentes com os das principais autoridades do Poder Executivo.

O duplo mandato seria um equívoco que, no Brasil, produziria deformações. 

Quem defende o duplo mandato quer que, além de combater a inflação, o Banco Central estimule a criação de empregos e o crescimento econômico.

Trabalhar com duas metas, a de inflação e a de emprego (ou de avanço do PIB), é como pretender apagar incêndio sem sujar a casa. São objetivos de difícil conciliação quando calibrados para produzir efeitos imediatos, especialmente no Brasil, onde a inflação é endêmica. E o desemprego pode ser produzido por fatores que nada têm com o volume de moeda na economia. Pode ser produzido, por exemplo, pela adoção de novas tecnologias, como vem acontecendo.

Argumentar que o Fed (Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos) trabalha com dois mandatos é ignorar que o Fed apenas finge o cumprimento da meta de emprego. Na prática, trabalha apenas com meta (informal) de inflação, de 2% em 12 meses.

Além disso, o Brasil está longe de ser uma economia equilibrada. Quando a política fiscal não ajuda, não há outra opção à política monetária do que aumentar os juros para combater a escalada da inflação, ainda que o efeito colateral seja contração da atividade econômica.


CONFIRA:

Imposto para a segurança

O ministro Henrique Meirelles rechaçou a proposta de que o governo crie imposto para cobrir despesas com segurança pública. A ideia desse imposto é absurda e desconhece as regras republicanas de financiamento do Estado.

O apelo de Jatene

Lembra o apelo que o então ministro da Saúde, Adib Jatene, fez em 1996 para a criação de um imposto “para financiar a saúde”. Como a arrecadação de um imposto não pode ter finalidade específica, foi criada a CPF (depois CPMF). Mas, mesmo tendo finalidade específica, o dinheiro arrecadado foi para o Tesouro e usado para outras coisas.

Questão de orçamento

Cada país tem suas necessidades e fontes de financiamento. A elaboração do Orçamento deve eleger as prioridades. Se o dinheiro vai para segurança ou para a educação e não para o investimento em energia elétrica é questão de opção política. Se é para gastar mais em segurança, outros setores terão de perder.

O malabarismo de Temer - ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

O GLOBO/ESTADÃO - 23/02

Por que se precipitou uma intervenção que poderia ter sido feita 10 dias depois?

E tudo se acabou na quarta-feira. Na véspera do carnaval, o Planalto ainda parecia empenhado em levar adiante o que anunciara poucos dias antes: uma derradeira tentativa de mobilizar a maioria de três quintos que permitiria a aprovação da reforma da Previdência, ainda em fevereiro. Mas, num piscar de olhos, as prioridades mudaram. E, de início, Temer nem mesmo deu o dito por não dito. É impressionante a sem-cerimônia com que políticos podem abandonar de chofre um tema que lhes dominou o discurso por meses a fio, como se jamais tivesse sido sequer mencionado.

É bem verdade que o tema ficara espinhoso. Já em dezembro, parecia claro que a aprovação da reforma se tornara difícil. Mas o Planalto fez o que pôde para manter viva a perspectiva de aprovação, dando amplo uso ao tema para ocupar o noticiário de janeiro.

No fim do recesso parlamentar, contudo, o governo já não escondia sua apreensão com o ônus político que poderia advir do desfecho decepcionante da longa batalha pela aprovação da reforma. O desafio passara a ser evitar que o abandono da batalha tivesse conotação de derrota. Ressabiado, o presidente da Câmara externava abertamente sua irritação com a possibilidade de que Temer ficasse tentado a se esquecer dos longos meses de aperto por que teve de passar, na esteira do 17 de maio, e quisesse pespegar toda a culpa pelo fiasco no Congresso.

É até possível que, se Joesley Batista tivesse sido barrado na portaria do Jaburu naquela noite fatídica, a reforma já estivesse aprovada desde meados do ano passado. Nunca saberemos. É também verdade que, no final do ano, quando Temer afinal se livrou da última denúncia, o governo conseguiu afinal acertar seu discurso sobre a reforma, ao passar a bater na tecla certa da eliminação de privilégios. Mas, àquela altura, a fragilização de Temer já tinha comprometido em larga medida sua ascendência sobre a bancada governista.

Não eram infundadas, portanto, as preocupações do Planalto com o ônus político do abandono da batalha. O que surpreendeu foi a forma peculiar com que Temer, afinal, tentou se desvencilhar desse ônus, apostando numa cambalhota política de alto risco que, num passe de mágica, supostamente lhe permitiria transmutar-se, incólume, de patrono da reestruturação da Previdência em paladino da segurança pública.

Não é que as duas coisas não tenham relação. Têm, e muita. A deterioração da segurança pública vem sendo agravada, em grande medida, pela crescente penúria fiscal dos Estados, engendrada, em boa parte, pelo crescimento insustentável de suas folhas de inativos. Não haverá solução estrutural para a crise da segurança pública sem o alívio fiscal que a reforma da Previdência poderá propiciar aos Estados.

O governo poderia ter feito bom uso do agravamento da crise de segurança no Rio de Janeiro para dar ao Congresso o senso de urgência que faltava para aprovar a reforma da Previdência. Caso não conseguisse, pelo menos teria feito da questão previdenciária o tema central da campanha eleitoral deste ano.

Mas o Planalto não quis incorrer no ônus político de uma possível derrota no Congresso. Preferiu jogar a toalha, agarrando-se à absurda alegação de que a necessidade de intervenção federal imediata no Rio de Janeiro inviabilizara a aprovação da reforma na última semana de fevereiro. “O governo tomou a decisão de fazer da guerra ao banditismo sua prioridade”, foi o “esclarecimento” afinal dado, no início desta semana, por Carlos Marun, a quem Temer entregara, em dezembro, a Secretaria de Governo da Presidência da República, para que mobilizasse a maioria requerida para a aprovação da reforma no Congresso.

Nada disso implica subestimar o descalabro da segurança pública no Rio de Janeiro ou negar a necessidade de intervenção federal. O que é deplorável é que Temer tenha precipitado uma decisão que poderia ter sido tomada 10 dias depois, para tentar se esquivar do ônus político de um desfecho desfavorável da batalha pela reforma da Previdência, de olho no seu impensado projeto de reeleição.

* ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO