ESTADÃO - 14/11
A disputa eleitoral deste ano nos Estados Unidos escancarou para todo o mundo a facilidade com que um país se pode deixar arrastar para a radicalização e, com ela, para o retrocesso.
Em 1967, Anthony Downs, um dos mais celebrados cientistas políticos americanos, elaborou um requintado argumento a fim de demonstrar que os Estados Unidos dificilmente cairiam em tal armadilha. Numa sociedade próspera, com apenas dois grandes partidos, sem tradições ideológicas comparáveis às da Europa, um candidato teria de pender para o centro, sob pena de se isolar e perder de lavada. A virtude estaria sempre no centro. Tal argumento podia ser lido como um retrato fiel do que acontecera três anos antes, quando o destempero radical do sulista Barry Goldwater empurrou o Partido Republicano para um abismo. Aquele pleito e a teoria de Downs casavam-se perfeitamente. Nada que ver, é claro, com a eleição de 2020. Ainda próspero, mas economicamente muito mais vulnerável, sem ideologias do tipo europeu, mas com algo muito pior, um racismo desabrido e crescente, a polarização se impôs no país desde a eleição de 2016.
Donald Trump não sucumbiu como Barry Goldwater. Ao contrário, mostrou-se altamente competitivo. Transformou a grossura verbal em potente arma política, a ponto de se apresentar como vítima de fraude nas urnas. Chega mesmo a declarar que não passará o cargo a Joe Biden no dia 20 de janeiro, como prescreve a lei. Quem diria, o modelo mundial de democracia subitamente transformado em ícone de república bananeira.
Claro, nós, brasileiros, rirmos do grande irmão do norte é como o roto rir do esfarrapado. Primeiro, porque não somos uma sociedade próspera: somos bem o contrário disso. Segundo, porque não temos dois partidos centenários, teoricamente capazes de moderar os enfrentamentos políticos. Temos 26 siglas representadas na Câmara dos Deputados, nenhum deles detendo sequer 20% das cadeiras, sendo, por conseguinte, muito mais parte do problema que da solução. No nível de Trump, ou aspirando a tal, temos no Planalto o sr. Jair Bolsonaro, que não transformou a pandemia num desastre muito maior porque não foi capaz, e porque o Brasil, nesse aspecto, tem pelo menos uma defesa de que os Estados Unidos carecem: um sistema público de saúde.
Eis a diferença fundamental: não tivemos uma polarização entre dois partidos políticos com identidades bem delineadas, mas entre duas maçarocas desorientadas, cujo único objetivo era se destruírem uma à outra. Clara ilustração disso é a facilidade com que Jair Bolsonaro recorreu ao clássico estelionato eleitoral, trocando a “nova política” que prometera instaurar, pelo “Centrão”, lídimo representante do fardo arcaico que insiste em se perenizar. Noves fora, não estamos na iminência de um retrocesso: estamos bem no meio dele, com remotas chances de ajustar as contas públicas nos próximos cinco anos, na obrigação de destinar outra grande soma ao auxílio emergencial, caso o coronavírus retorne numa onda ainda pior, e, para chover um pouco no molhado, incapazes de superar nosso obsceno quadro de desigualdades sociais e educacionais e nossos problemas de saneamento e segurança.
Não se requer nenhuma lupa para perceber que as entranhas do Estado brasileiro estão tomadas por uma chusma de grupos de interesse (as chamadas corporações), altruístas como piranhas que se agitam num rio à espera de vacas que se aproximam. Alguém sabe como moderar o apetite de piranhas? No plano político, teoricamente existem dois mecanismos: de um lado, os três Poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo) e, em particular, os partidos políticos; de outro, elites dignas do nome, ou seja, grupos dotados de recursos (econômicos, educacionais, etc.) e imbuídos de um grau razoável de dedicação ao bem comum. No Brasil, infelizmente, as instituições que corporificam os três Poderes e os partidos têm funcionado mais como correias de transmissão do que como mecanismos de balizamento e contenção dos grupos de interesse.
Restaria falar sobre as elites, questão mais complexa, sobre a qual o espaço disponível apenas me permite uma breve delineação. Desde o advento do petismo temos ouvido que elites conspiratórias são a causa última dos nossos males. Observo, todavia, que essa imagem nada tem que ver com o conceito de elite que sugeri no parágrafo anterior. Tampouco emprego o termo elite para designar as cúpulas das organizações corporativas criadas naquele longínquo tempo da ditadura varguista: federações e confederações da indústria, do comércio, da agricultura, etc., bem como as entidades sindicais que fazem o contraponto do lado trabalhista. Admito que indivíduos dotados de algum sentimento verdadeiramente “elitista” possam existir em tais organizações, mas como tais, elas não preenchem suficientemente os requisitos que tenho em mente. Um estudo mais extenso dessa questão deveria começar admitindo que um dos grandes problemas brasileiros possa ser a carência, e não a abundância de verdadeiras elites.
SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário