Estado brasileiro precisa ser profundamente reformado para que o cidadão dele se sinta participante integral, com direitos e deveres, sob auspícios da Constituição
Ante a perspectiva sombria de que o País mergulhe na violência, como resultado da escalada retórica autoritária do presidente Jair Bolsonaro e da disposição belicosa de seus camisas pardas, emerge um debate crucial sobre os mecanismos por meio dos quais a democracia se defende dos extremistas que, maliciosamente, exploram as liberdades constitucionais para tentar arruiná-la.
A Alemanha, por exemplo, construiu, logo depois da 2.ª Guerra, um arcabouço legal e cívico para proteger sua democracia da ação insidiosa dos herdeiros do nazismo. O objetivo explícito era impedir que a democracia liberal que se pretendia construir fosse arruinada pelo extremismo, como aconteceu com a República de Weimar, que o nazismo pôs abaixo em 1933.
Na reconstrução do Estado alemão, o papel dos partidos – isto é, da representação da vontade política dos alemães – foi reforçado, enquanto a formação de partidos extremistas, tanto de direita como de esquerda, foi proibida. No mesmo sentido, não se confundiu a liberdade de expressão com o discurso de ódio, que foi proibido.
Além disso, o Tribunal Constitucional – que fica em Karlsruhe, a 670 km da capital, Berlim, e portanto geograficamente distante das pressões das autoridades federais – conquistou o apreço de todo o país por defender os cidadãos das injunções do poder e por transformar o respeito à Constituição em demonstração de patriotismo. A reverência à lei substituiu a antiga devoção alemã às autoridades fortes, de modo que a Constituição se tornou o elemento de coesão entre os cidadãos. Uma democracia com essas características é muito mais sólida, mesmo diante da ameaça constante do extremismo.
O Brasil não teve nada parecido com o nazismo, e sua democracia já passou com louvor por testes de estresse bastante significativos desde o fim do regime militar. Mas talvez a ameaça de ruptura desta vez tenha alcançado um patamar tal que torne inevitável articular mecanismos para proteger a democracia de seus inimigos, cada vez mais desabridos. E, assim como aconteceu na Alemanha, será preciso fazer uma reforma do Estado que vá muito além da simples reorganização administrativa.
Essa reforma precisa reduzir o tempo da burocracia, excruciante para os cidadãos que esperam valer seus direitos, tornando o Estado mais eficiente e responsivo. A lentidão estatal, que serve a propósitos obscuros, colabora decisivamente para que os cidadãos percam a confiança na administração pública – e a descrença cresce à medida que, por outro lado, esse mesmo Estado se mostre rápido para despachar demandas de quem tem poder ou se relaciona bem com as autoridades.
É a impotência do cidadão ante esse Leviatã, a despeito dos amplos direitos que a Constituição lhe assegura, que alimenta a desilusão cívica que pode resultar na aceitação, quando não no desejo, de uma solução antidemocrática.
Esse cidadão desencantado é o mesmo que não se reconhece no Estado, e portanto não se sente participante de sua construção e de seu funcionamento. Foi isso o que historicamente facilitou a ascensão dos regimes totalitários na Europa no passado recente. Uma reforma do Estado deve almejar, portanto, uma reconexão com os cidadãos, para que a democracia faça sentido de novo.
Para isso, esse Estado reformulado – necessariamente menor e menos dispendioso do que é hoje – deve se voltar para a execução eficiente de políticas públicas em áreas como segurança, saúde, educação e saneamento básico. Deve, também, ter mecanismos que ensejem uma fiscalização ampla e transparente dos funcionários públicos e das autoridades eleitas, responsabilizando-os pelas suas falhas. Por fim, mas não menos importante, deve ser capaz de estabelecer parcerias com a iniciativa privada, para transformar ações estatais em ações cidadãs. Um exemplo bem-sucedido desse modelo, no Brasil, é o Comitê Gestor da Internet, que alcançou ótimos resultados ao unir Estado e sociedade.
Em resumo, o Estado brasileiro precisa ser profundamente reformado para que o cidadão dele se sinta participante integral, com direitos e deveres, sob os auspícios da Constituição – esta sim, fonte de toda a autoridade e da coesão nacional. Somente assim a democracia ganhará músculos para se defender de seus inimigos.
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