É preciso ter esperança... e mãos limpas colaboram para a ética e para evitar doenças
Nos banheiros do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), existe um cartaz dizendo: “Aqui você é livre para usar o banheiro correspondente ao gênero com o qual se identifica”. No rodapé, indica-se a Resolução Federal número 12, de 16 de janeiro de 2015, e outro parecer de um conselho de combate à discriminação (CNCD/LGBT 01/2015). O texto é fruto de uma transformação no enfoque sobre o que seria sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Porém, gênero não é o tema de hoje. Quero falar da percepção de masculino e feminino em banheiros.
Vamos sair da redoma do IFCH. Em um restaurante elegante da Rua Amauri, em São Paulo, fui ao toalete e encontrei, em uma porta, a sílaba “blá”. Em outra porta, multiplicada em muitas formas gráficas, “blá blá blá blá blá”. O sentido era óbvio: o masculino era de poucas palavras, sobriedade retórica e objetividade. O feminino reforçava a ideia de que mulheres falam demais. Caso restasse alguma dúvida, bonecos de Adão e Eva ilustravam cada porta.
Bem, o mundo é mais complexo do que há 50 anos. Banheiros são simbólicos. Quando Margaret Thatcher se tornou membro do Parlamento Britânico, em 1959, descobriu que não havia um banheiro feminino porque... não existia uma bancada feminina! Nas visitas guiadas ao Pentágono, em Washington, descobrimos que há muitos banheiros no prédio porque foram construídos de forma dobrada para brancos e negros durante o período do “separados mas iguais”. Ao anunciar um banheiro específico para o grupo LGBT, a escola Unidos da Tijuca causou muitos debates na sua quadra, em 2011. Apartheid gay! foi um slogan frequente contra a iniciativa. Com a invenção da ideia de intimidade, os banheiros foram se multiplicando. Ter seu próprio banheiro virou um sonho expressivo das pessoas contemporâneas. Esse desejo não existia nos séculos anteriores. Banheiros são metáforas fortes ou espelhos de como o mundo se constitui.
Se o banheiro é seu e, ali trancado, finalmente, caem suas máscaras e representações sociais. Muitos cantam no espaço íntimo. Já ouvi relatos de dança. O adolescente trancado no seu ambiente sanitário encontra o refúgio para sua individualidade, seu medo e seu prazer. Muitos homens e mulheres adultos também...
Banheiro também é arte. Marcel Duchamp revolucionou o conceito de estética colocando um mictório sobre um pedestal. O urinol de 1917, batizado A Fonte, é uma peça icônica da dessacralização assinada pelo pseudônimo R. Mutt. A obra é uma chave do Dadaísmo e está avaliada em mais de três milhões de euros. Já sofreu mais de um ataque, sinal claro da sua “aura” respeitável. No último atentado, com martelo, o agressor alegou estar usando o mesmo princípio de desconstrução que o autor fizera.
Se a arte é o sublime, uma maneira de desconstruí-la é apelar a um subproduto dos banheiros. Piero Manzoni enlatou, em 1961, suas próprias fezes em recipientes bem acondicionados. Cada lata vale uma fortuna hoje. Cumpre-se o traço de “épater le bourgeois” que marca tantas vanguardas. Escandalizar o burguês foi um grito de poetas como Rimbaud ou Baudelaire. Talvez a burguesia já não se choque tanto e uma nova geração de artistas faz outras intervenções no universo do banheiro e seus significados. No Museu Guggenheim (Nova York), o italiano Maurizio Cattelan colocou um vaso sanitário de ouro maciço: América. A peça podia ser utilizada (com algumas regras) pelo público. Se antes a burguesia se retirava horrorizada com o vanguardismo de artista, hoje há fila para selfies. Sentar-se sobre sólidos quilates não choca mais, apenas aumenta likes em redes sociais. Ao ser exposta no Palácio Blenheim, em Oxfordshire (Inglaterra), a obra foi roubada. Banheiro metáfora, banheiro chocante e banheiro com valor de revenda... Quando Winston Churchill nasceu naquele palácio, a 30 de novembro de 1874, havia poucos banheiros na propriedade. Volto ao ponto: sanitários são documentos de uma época.
Os banheiros individuais são espaço de uma sonhada liberdade. Os que comportam mais gente produzem relações ambíguas e corporativas. Homens falam de forma mais decidida e máscula no banheiro, talvez como reação ao ambiente de exposição do corpo. Desde o colégio, fantasiávamos o que as meninas faziam no banheiro. Acho que o jogo permanece.
Assim, passados séculos de transformações sociais e de identidades de gênero, preste um pouco mais de atenção nas gramáticas que antecedem ao simples uso do sanitário. A arte usou banheiros. O debate de gênero ilustra portas. O que é masculino e feminino e quais os limites da intimidade estão fora e dentro dos espaços sanitários. Gosta da ideia? Abomina? Acha que é o fim do mundo? Sem problema. O que eu peço a libertários e conservadores, esquerda e direita, anarquistas e monarquistas é o mesmo: lavem bem a mão depois de usar o banheiro. Contaminações não respeitam barreiras. É preciso ter esperança... e mãos limpas colaboram para a ética e para evitar doenças.
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