A saúde pública tem tido grande papel na crise, o que não significa que não deva ser aperfeiçoada
A epidemia que já deixa um rastro de mais de 10 mil mortos e 145 mil contaminados ainda avança para chegar ao ápice e constrói uma agenda para o depois da crise. Nela há menos questões novas do que temas e assuntos conhecidos, mas que são negligenciados por políticos, pelo poder público em geral e pela própria sociedade, que não pressiona governos nem escolhe representantes como deveria para resolver problemas básicos que se eternizam.
Há questões que ficam presas no emaranhado da burocracia estatal e na letargia dos poderes, algumas delas paralisadas pela ação de grupos de interesse. Um exemplo consensual é o precário saneamento básico, muito falado mas sem que haja ações com a força necessária para enfrentá-lo. Espera-se que depois da crise um novo marco regulatório para o setor seja aprovado no Congresso, para que empresas privadas possam ampliar sua participação na atividade.
No atendimento à população, ao lado do merecido reconhecimento do trabalho dos profissionais de saúde, destaca-se o Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição de 1988 com o meritório objetivo de o Estado conceder atendimento a todos, em qualquer ponto do país, gratuitamente. Dentro da visão do “Welfare State” da social-democracia europeia, em que pesados impostos sobre a renda financiam este e outros sistema públicos, como o de educação, garantindo às famílias serviços essenciais de boa qualidade, liberando uma razoável parcela de sua remuneração para o consumo ou a poupança.
Este objetivo não foi alcançado no Brasil, pelas dificuldades fiscais do Estado, e por isso o SUS precisa ser encarado como um projeto inacabado. Mesmo na Europa o custo deste “Estado de Bem-Estar” pressiona orçamentos de países.
Na crise, o SUS tem funcionado como uma trincheira valiosa de atendimento à população, com todas as conhecidas distorções. Mas para se enfrentar a questão de maneira séria e consequente será preciso descontaminar o tema de maniqueísmos como o da “medicina pública” versus “medicina privada”. A complementação entre as duas deve ser objetivo constante.
É crucial que o SUS, onde também há centros de excelência, melhore a qualidade do atendimento, e este é um objetivo a ser alcançado não apenas pelo fim do “subfinanciamento” do sistema.
O contribuinte precisa estar seguro de que o dinheiro do seu imposto será bem aplicado. O que só acontecerá quando houver uma gestão eficiente e não apenas no SUS, mas em toda a estrutura do Estado. O ideal é que a dedicação do profissional de saúde na epidemia, (no Brasil e no mundo), motivo de justas e emocionadas homenagens, tenha continuidade na melhoria das suas condições de trabalho e de toda a estrutura, para que também a população de renda mais baixa, dependente do SUS, tenha um atendimento digno.
Pode ser que faltem recursos, mas não há dúvida de que o SUS precisa de um choque administrativo, nos seus três segmentos, União, estados e municípios. É uma estrutura gigantesca, com dezenas de milhares de servidores, R$ 140 bilhões de orçamento este ano, e que em 2019 prestou 8 milhões de atendimentos. Há outros arranjos de governança no setor de saúde — fundações, organizações sociais — com bons resultados para os usuários, por utilizarem métodos gerenciais do setor privado, fugindo da cultura autárquica e das regras do estatuto do funcionalismo público, em que a falta da meritocracia esclerosa qualquer sistema.
Em uma organização dessa magnitude, o engessamento de regras fomenta ineficiências graves, difíceis de serem revertidas com o passar do tempo. O resultado é que a conta termina sendo paga pelos milhões que dependem do atendimento do SUS na forma de um serviço de baixa qualidade, o que não significa depreciar seus servidores, dignificados na epidemia. Manter esta situação é agir contra o povo.
O foco que a epidemia fecha sobre a saúde concede a oportunidade de uma rediscussão do SUS com menos ideologia e mais fundamentação. A dedicação dos profissionais que vem sendo demonstrada na crise precisa ter sequência em um amplo projeto de modernização da saúde pública, também em favor deles.
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