Ministros que citam Platão, filósofos de esquerda negacionistas, o que resta ainda para nos surpreender?
Um ministro do Boçalnistão que cita Platão no meio de uma coletiva, religiosos inseguros questionando a Teodiceia de Leibniz, youtuber recomendando a resiliência moral e espiritual dos estoicos, um filósofo italiano de ideias sólidas dando a impressão (mas só a impressão) de concordar com os negacionistas da pandemia. E como se toda essa filosofância não bastasse, eis que o ‘enfant terrible’ esloveno Slavoj Zizek, entusiasmado com o surto de solidariedade humana deflagrado pela pandemia mundo afora e a concomitante desmoralização do ultraliberalismo econômico, reapareceu para celebrar o surgimento de um espírito comunitário há muito perdido e, num arremate hiperbólico bem ao seu feitio, antecipar a aurora socialista. O que mais falta acontecer? Filosófica e sanitariamente falando, a internação manicomial do Rasputin do boçalnarismo, Aiatolavo de Carvalho. Na ala dos horoscopistas.
Também me aturdi com a alusão do ex-ministro Mandetta ao Mito da Caverna. Como esperar que um integrante do governo mais agressivamente ignorante e obscurantista da história do Brasil, ademais ministro da Saúde, não da Cultura, tirasse do bolso do jaleco a República de Platão enquanto conversava com a imprensa?
Desde o início entendi a alusão como uma indireta para embaraçar o presidente apedeuta, que até então só devia conhecer do filósofo grego o conceito de “amor platônico”. E no entanto, ele, o “Mito da Caserna”, metáfora sem paternidade filosófica definida, deveria saber, empiricamente, do que trata a alegoria da caverna de Platão, pois nela parece ter vivido desde que nasceu, a confundir as sombras que a fogueira projeta nas paredes com o mundo real.
Surpreendeu-me a ressalva de Mandetta de que leu sobre o Mito da Caverna diversas vezes, desde os 14 anos, e até hoje não o entendeu direito. A alegoria é simples, translúcida, de fácil compreensão. O personagem de Jean-Louis Trintignant explicou-a, didaticamente e sem muitas palavras, numa cena de O Conformista, filme antifascista de Bernardo Bertolucci visualmente marcado por sombras cavernosas, o que, aliás, já motivou pelo menos um ensaio a respeito: Shadows Philosophy: Plato’s Cave and Cinema, de Nathan Andersen, editado pela Routledge seis anos atrás.
Infinitamente mais embaraçoso seria se o ministro tivesse feito uma alusão, por exemplo, às mônadas do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) ou ao ápeiron do pré-socrático Anaximandro (circa 610 a.C.). Aos ouvidos do presidente, não tenham dúvida, ápeiron (elemento invisível que teria dado origem ao universo) soaria como mais uma panaceia a ser testada no combate ao covid-19, uma nova cloroquina, no caso, de procedência grega, que ele, suspeito, adotaria instantaneamente, na esperança de logo pôr fim ao confinamento e enxotar a população de volta ao batente.
Por falar em Leibniz, se Mandetta até hoje não captou por inteiro a alegoria platônica, por que haveríamos de entender o sentido e alcance da Teodiceia? Sei o que Teodiceia significa e finjo entendê-la além da rama. Sempre me lembro dela diante de um flagelo de grandes proporções e da clássica cobrança de Epicuro: se Deus é onipotente e generoso, por que permite que o mal triunfe e guerras e outras desgraças sacrifiquem tantas vidas inocentes? Esta indagação me parece ociosa se feita por um ateu ou um agnóstico, pois estes duvidam ou descreem da existência do Altíssimo e seus divinos poderes, ou por um crente, que jamais há de pôr em dúvida a suprema bondade e o indisputável senso de justiça do Santo Pai.
O mencionado filósofo italiano que de início deu a impressão de fechar com os negacionistas é Giorgio Agamben. Sumidade em análises estéticas e biopolíticas e pertinaz estudioso do “estado de exceção”, bem assistido de traduções no Brasil, Agamben ateou fogo no arraial ao criticar, em três textos publicados na Itália, as medidas excepcionais impostas pelo combate à pandemia, segundo ele, perigosamente desproporcionais, já que para a maioria dos infectados o covid-19 será apenas uma gripe mais forte.
Agamben, que a três dias de completar 78 anos pertence a um dos grupos de risco, não é contra as emergenciais, e em princípio transitórias, medidas de isolamento e distanciamento social em si, apenas questiona sua abrangência e os eventuais perigos decorrentes da quarentena e demais limitações draconianamente impostas a todos nós pelas autoridades. Danos sobretudo psicológicos e políticos.
O prolífico pensador romano não é contra os protocolos sanitários vigentes, apenas receia que redundem em aparato de opressão e sirvam para ampliar a dominação do Estado sobre nossos corpos e nossas mentes, reduzindo nossa liberdade, com o abalizado respaldo da medicina. A China, realça ele, já está normalizando algumas de suas medidas de emergência, com interesses que vão além da proteção à saúde pública. Agamben contesta os imperativos biopolíticos de valorização da vida acima de tudo. Sim, outras demandas fundamentais a vida nos oferece ou impõe, mas a sobrevivência biológica é condição sine qua non para o cultivo dos valores sociais privilegiados pelo filósofo. Os mortos não têm escolha.
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