FOLHA DE SP - 20/04
Estamos chegando perto de onde a curva da relação entre a vida e a economia se confundirão
A oposição humanismo versus utilitarismo é pura retórica barata, mas é boa para a polarização política. Humanista, no sentido que se usa nesta epidemia, é valorizar a vida acima de tudo. Como cada morte é um absoluto, a ideia do valor absoluto da vida é inquestionável.
Mas, quando um oportunista diz isso, ele paralisa seu raciocínio. Utilitarista, também no senso comum da epidemia, é o desumano que pensa na economia e não reconhece o valor absoluto da vida. Errado: o utilitarismo não é desumano.
A realidade não cabe nessa oposição. Quer um exemplo didático? O próprio confinamento (considerado pelo senso comum como humanista) visa diminuir o gargalo do sistema de saúde e reduzir a contaminação do corpo médico, não só porque o corpo médico (todo o pessoal do hospital) é feito de gente, mas porque a destruição do corpo médico implica maior risco do sistema de saúde, que, por sua vez, se for destruído, matará mais gente. Este raciocínio, para qualquer pessoa treinada em ética utilitária, é cristalino.
A afirmação “vidas fazem a economia e não o contrário” é conversa para Disneylândia, retórica barata de marqueteiro querendo seguidores; adultos sabem que vida e economia estão intrinsecamente relacionadas. Vida não é um conceito abstrato. E economia não é só mercado financeiro. Estamos chegando perto de onde essa “curva” (curva está na moda) da relação entre a vida e a economia se confundirão.
Aqui no Brasil isso tem nome: pobres vão morrer e bonitinhos vão sair do pânico e se esquecer da epidemia.
Infelizmente, por culpa do nosso presidente, caímos numa armadilha que armou o discurso humanista marqueteiro que dissocia a vida de suas condições concretas. Muita gente vive querendo dar provas de pureza anti-bolsonarista e faz parecer que só existe a defesa absoluta e eterna do confinamento ou a
delinquência presidencial.
Não. O grande debate utilitário (definição abaixo) e humanista no mundo agora é quando e como sair do confinamento. Quem negar esse fato, o faz por má-fé ou por ignorância.
Não se trata, pura e simplesmente, de suspender o confinamento e correr para o shopping, mas, como resolver o problema da imunidade do rebanho (única forma a mão de combate a epidemia) e da economia, que sustenta todas as vidas, se ficarmos trancados em casa com medo por meses, criando uma reserva de futuros não imunizados.
Imunidade de rebanho é quando a maioria já ficou imune ao vírus e isso só acontece quando entramos em
“relação” com ele e a maioria esmagadora sobrevive.
Se você acha que ser humanista é “defender a vida acima de tudo” e dorme bem com essa definição empobrecida, eu pergunto a você: tá valendo bater em gente para mandar essa gente para casa na porrada? Não preciso ser um discípulo de Foucault ou Agamben pra ver aí um ato de violência biopolítica, que reduz a pessoa a condição de vida nua, que implica por sua vez em vê-la apenas como transmissora do vírus. Ela não é mais gente, é um corpo científico que traz o vírus para a sociedade. O paradoxo do humanismo barato aparece aí na sua farsa.
Infelizmente, o marketing político está jogando com o termo humanista como se ele fosse um atestado de responsabilidade pública. Não é.
Contrariamente ao que afirmam os oportunistas, o utilitarismo é humanista, no sentido filosófico do termo: acreditar na capacidade racional do homem de tomar decisões que reduzam o sofrimento das pessoas. A fronteira entre humanismo e utilitarismo é menor do que parece.
E, por último, uma pequena nota de alerta. Há um outro comportamento se espalhando que é indecente. Supostos “cientistas” que afirmam que ficaremos em confinamento por um ou dois anos como conclusão falsamente científica cometem uma indecência. Projeções sem dados suficientes, que é o caso, não valem nada em epidemiologia, mesmo com o carimbo de grifes acadêmicas.
O “terrorismo pseudocientífico” deve ser visto com cuidado. É puro marketing pessoal ou institucional: o pânico dá dinheiro. Esse ato de terrorismo psicológico não deve encontrar eco na mídia profissional.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário