A pausa permite pensar sobre os comportamentos que vamos querer manter após a crise
Mesmo com o mundo andando em velocidade frenética antes da Covid-19, já se falava em “estagnação” e até em “estagnação secular”. De um lado, a economia dos EUA fervendo; de outro, países adotando juros negativos para forçar o dinheiro a circular ainda mais depressa, como se o mundo precisasse de ainda mais velocidade.
Esse paradoxo em que se vivia ao mesmo tempo aceleração e estagnação nunca pode ser bom sinal. Mesmo que profissionais do otimismo como Steven Pinker continuassem a pregar que vivíamos o “melhor dos mundos”, o fato é que já havia uma sensação (e números) mostrando que as condições de vida no planeta estavam se deteriorando. Podia até haver consumo, mas não havia progresso.
Um exemplo é que, quando se olha para inovação, mesmo com um mundo conectado em polvorosa, nunca mais houve um grande avanço tecnológico disruptivo com impacto econômico e social profundo, como a descoberta dos antibióticos ou a invenção do vaso sanitário.
Mesmo com o surgimento da internet, seu impacto na produtividade econômica continuou negligenciável. “A era do computador está em toda parte, menos nas estatísticas sobre produtividade”, já dizia Robert Solow em 1987. Além disso, apesar de toda a conectividade, nunca o distanciamento de visões entre as pessoas foi tão grande.
Com a Covid-19, estamos sendo obrigados a reduzir subitamente a velocidade. Essa frenagem, diferentemente do que se imagina, em vez de gerar só mais estagnação, permite também alguns poucos progressos impensáveis em tempos “normais”.
Por exemplo, em bancarização. Até a semana passada, 1 de cada 3 brasileiros adultos não tinha conta bancária. Diferentemente da Índia, da China, do Quênia e de outros países em desenvolvimento, o Brasil não incluiu seus segmentos mais pobres no setor bancário nos últimos anos.
Com a necessidade de transferir renda para os mais vulneráveis, é possível que de 10 milhões a 15 milhões de pessoas sejam incluídas no sistema bancário em três semanas. Em face disso, cabe perguntar: por que não fizemos isso antes?
Recuperamos até alguma capacidade de produzir consenso. O distanciamento social é um exemplo. Apesar dos seus detratores, um contingente enorme de pessoas no planeta hoje sabe que ele é a única medida eficaz agora para evitar o avanço da doença e está agindo de acordo com esse consenso.
Esse tipo de ato mostra que, quando somos capazes de concordar, podemos realizar ações extraordinárias como humanidade.
A Covid-19 aguça também a visão. A pausa permite pensar sobre os comportamentos com os quais vamos querer continuar e quais vamos descartar quando a crise regredir.
É claro que o risco de tragédias políticas se arma também no horizonte. Traumas, individuais ou sociais, podem gerar distúrbios. Se não tratados desde logo, esses distúrbios deitam raízes e se tornam longevos.
Ao mesmo tempo, há a possibilidade de surgirem modos de vida mais satisfatórios e solidários. O desafio da Covid-19 pode ajudar a curar outras doenças profundas que se acumulavam aos montes sem percebermos.
Em “Um Fogo sobre as Profundezas”, o escritor de ficção científica Vernor Vinge fala sobre uma doença que se alastra pelo universo. A única forma de interrompê-la é reduzir o curso do próprio tempo. Pode ser exatamente disso que precisamos. Desacelerar talvez seja a única forma de voltar a progredir.
Reader
Já era Reuniões deliberativas apenas presencialmente
Já é Congresso e STF decidindo e votando virtualmente
Já vem Reuniões de condomínio virtuais
Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
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