ESTADÃO - 07/04
A muralha regulatória chegou à perfeição: pôs fora da lei as ações a favor da sociedade
É melancólica essa novela da disponibilização do socorro financeiro à economia paralisada pelo coronavírus e da exploração política da “culpa” pela demora em consegui-la.
Como de hábito, os funcionalismos “de direita” e “de esquerda” puseram-se fora do “Orçamento de Guerra”, o que confirma e aprofunda o nosso apartheid. Todas as medidas do Estado para com o Estado para coibir “malfeitos” ou incentivar comportamentos desejados estão fadadas a transformar-se em ações entre amigos, seja para não serem aplicadas aos funcionários culpados, seja para serem aplicadas a todos independentemente de merecimento.
O mundo que funciona é o que não cuida de legislar desenfreadamente para cercar comportamentos possíveis, atravancando a vida de todo mundo, mas premia ou pune inexoravelmente, por iniciativa popular, os comportamentos de fato havidos, pois, sendo o povo a vítima dos maus ou o beneficiário dos bons comportamentos dos agentes estatais, é ele a única entidade em condições de julga-los com legitimidade. Mas o Brasil não aprende com os fatos e a tudo responde com mais Estado e menos cidadania.
Na semana passada atribuí à China a invenção do método e errei. Foi da Coreia do Sul a ideia de aplicar o aparato de espionagem que as gigantes globais de animação de redes montaram para roubar e vender informações sobre cada um de nós a quem quiser pagar por elas, dos comerciantes aos políticos, passando pelos assassinos profissionais, no combate ao coronavírus.
A má vizinhança tornou-os atentos e a epidemia de gripe com síndrome respiratória grave de 2015 (Sars), prima desta, levou-os à revisão e consolidação de um conjunto de leis que define responsabilidades do governo federal, dos governos locais, dos médicos e dos cidadãos para desimpedir ações voltadas para a prevenção, notificação, investigação, compensação e mobilização de recursos de combate à epidemia.
A Coreia fez, em resumo, tudo o que o resto do mundo não fez, especialmente evitar depositar nas mãos da China a segurança da sua saúde pública, deixando para importar de lá tudo quanto é necessário para garanti-la, como fizeram todos quantos agora ardem no fogo da pandemia. Graças a isso, aplica hoje 5.200 testes por milhão de habitantes, enquanto os Estados Unidos ainda não chegaram a 100, e tem em estoque os respiradores, testes e equipamentos de proteção (EPIs) essenciais à emergência.
Criou, então, um “aplicativo de autodiagnóstico”, que cruza as respostas a um questionário com os resultados dessas medições e o log retroativo de deslocamentos físicos nos últimos 14 dias de cada cidadão, via celular, para atribuir-lhe uma classificação - vermelho, amarelo ou verde - que define seus direitos e deveres quanto à mobilidade ou graus de isolamento. Agora o celular é usado e exigido como um passaporte, o que permitiu ao país continuar funcionando enquanto combate a epidemia, com segurança e eficiência. É esse o esquema que vem sendo imitado por todo mundo que ainda pode fazê-lo, como Israel, Alemanha e até a própria China.
Quarentena burra, portanto, fica mais claro a cada minuto, é para quem não tem mais nada, nem testes, nem EPI, nem organização e, portanto, nenhuma noção segura do que está acontecendo. É o “remédio” que restou aos políticos relapsos, que não fizeram a lição de casa para não parecerem o que são. O único recurso ao alcance de muita gente que já foi boa como Estados Unidos e grande parte da Europa, especialmente a latina, por razões que incluem dosagens variáveis de incúria, de dolo e até de cinismo.
Todo mundo, entretanto, já admite pelo menos onde foi que errou e corre, Estados e cidadãos juntos, para construir a ponte que permite sair da quarentena burra - que, posto que a epidemia só cessa quando a maioria contrai o vírus e fica imunizada, serve, no máximo, para desconcentrar o número de mortes - e evoluir para a quarentena inteligente, que evita a hecatombe econômica.
O ministro Mandetta já mencionou que tem uma equipe completa correndo atrás da nossa versão do algoritmo coreano. Só que o caminho do Brasil está travado pela solidez mineral da burrice dos “soldados da fé”, cujo objetivo não é buscar a verdade, mas apenas “eliminar o oponente”. Estes, à direita e à esquerda, tanto quanto os que amplificam seus coices e rasteiras na mídia, bastam-se uns aos outros no seu ódio mútuo. Os pró-quarentena excluem tudo menos a quarentena e os contra-quarentena admitem tudo menos a quarentena, morra quem morrer, o que proporciona que a privilegiatura que come o dinheiro que nos falta permaneça gostosamente na sombra.
É debaixo desse barulho que a gente de boa-fé se debate trágica e inutilmente no atoleiro dos milhões de leis e regulamentos insanos que dão pretexto à colonização do Estado pela legião de fiscais, fiscais dos fiscais e “tribunais temáticos”, a rainha das “jabuticabas”, que mantém o País Real “rachadinho” e a serviço deles. Erguida para blindar o Estado contra a interferência do povo, a muralha regulatória chegou à perfeição: pôs fora da lei as ações do Estado a favor da sociedade.
JORNALISTA
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