O GLOBO - 27/07
É saudável que bens e serviços regulados de forma diversa concorram entre si
É consagrado na história e na teoria econômica que o desenvolvimento tecnológico não é obra do acaso. Superar padrões atrasados de produção demanda, simultaneamente, esforços da iniciativa privada e um quadro normativo/institucional atrativo ao investimento. Esse ambiente não é, evidentemente, estático. O texto normativo incide sobre a realidade aplicado a um conflito — e é aqui que as ameaças e barreiras à inovação e à criação de novos modelos de negócio têm aparecido com mais frequência no Brasil.
Não são poucos os casos que mostram que, na contramão, atores governamentais embaralham incentivos e interrompem ou atrasam o desenvolvimento tecnológico. Recentemente, disputa na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) sobre regulação de transmissão de conteúdo programático via internet chamou a atenção. Seria o serviço próprio da lei do SeAC, que regula o acesso condicionado (TV por assinatura), ou um serviço de valor adicionado (SVA), disposto na Lei Geral de Telecomunicações (LGT)? São várias as alegações para defender a aplicação do SeAC, desde que existiria “neutralidade tecnológica” na lei — e não interessaria qual o meio de difusão do conteúdo, basta que ele seja algum tipo de programação para estar abarcado pela regra — até que a disparidade tributária estaria configurada, pois as prestadoras de serviços de SeAC estariam sujeitas a obrigações que não incidem sobre a transmissão de conteúdo on-line.
O discurso é conhecido: já que a transmissão de conteúdo on-line e a programação de TV por assinatura concorrem, ainda que a substitutibilidade entre os serviços não seja plena (quem procura por TV por assinatura busca pacote de conteúdo diversificado, que os aplicativos de transmissão de conteúdo específico não oferecem), a menos que as condições entre as empresas que atuam no mercado sejam idênticas, há concorrência desleal, que deve ser combatida.
O argumento é sedutor, mas a realidade é diferente dessa caricatura. É saudável que bens e serviços regulados de forma diversa concorram entre si, tanto mais quando tratamos de mercados intensivos em inovação. Essas ofertas geralmente usam estruturas diferentes, atendem públicos distintos e estão reguladas por regras diversas.
Um exemplo são os aplicativos de transporte de passageiros. Quando eles entraram no Brasil, taxistas argumentaram que quem prestasse o serviço sem seguir a regulação seria clandestino. O que se verificou, porém, é que fazia sentido criar regras diversas para tais aplicativos, ainda que houvesse concorrência entre os serviços. Como afirmou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, um dos principais efeitos desse movimento foi a expansão do mercado de transporte individual, que passou a atrair passageiros que usavam outros modais.
O debate na Anatel traz elementos adicionais. A LGT prevê o SVA, portanto, não se trata de um serviço “clandestino”. Trata-se de discutir se, ainda que compitam em alguma medida, canais de TV por assinatura e serviços de streaming podem estar sujeitos a regras diversas. A premissa é que novos modelos de negócio tendem a precisar de formas de regulação distintas, e prender essas inovações a modelos aplicados às empresas incumbentes — exigindo dos entrantes cumprimento de regras antigas — não traz benefício ao mercado.
Como diz a MP da Liberdade Econômica, a regulação deve estimular e permitir a atividade econômica em diversas formas, e compreender os efeitos das decisões para o ambiente competitivo. Não é diferente quando debatemos oferta de conteúdo on-line, e é papel da administração pública ter atenção a essa realidade.
Vinicius Marques de Carvalho é advogado, professor da USP e foi presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
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