Desde a sessão do dia 26 de maio, estava claro que o Supremo Federal Tribunal (STF) estava disposto a tomar para si as prerrogativas do Poder Legislativo, ao continuar o julgamento sobre a criminalização da homofobia mesmo com projetos de lei sobre o assunto tramitando no Senado. Nas últimas semanas, também a Câmara passou a analisar um projeto com o mesmo teor, mas os ministros fizeram pouco caso e concluíram o julgamento nesta quinta-feira, dia 13. No fim, 10 dos 11 ministros decidiram que o Congresso estava omisso sobre o tema – apenas Marco Aurélio Mello soube enxergar a realidade –, e oito ministros decidiram aplicar os dispositivos da Lei do Racismo (7.716/89) à discriminação contra homossexuais e transexuais.
O ativismo judicial, desta vez, reveste-se de especial gravidade, e aqui destacamos o voto do ministro Ricardo Lewandowski. Ainda que em outras ocasiões o próprio ministro tenha demonstrado sua disposição para inventar regras legais, como no caso recente das privatizações, desta vez Lewandowski alertou para um ponto crucial: no caso da homofobia, o Supremo estava, ainda por cima, criando um novo tipo penal sem a existência de lei que o definisse, algo expressamente proibido pelo inciso XXXIX do artigo 5.º da Constituição. Marco Aurélio ainda acrescentou que “criar tipo penal provisório por decisão judicial” é incompatível com “qualquer Estado de Direito que se pretenda democrático”. O terceiro ministro a rejeitar a equiparação da homofobia ao racismo foi o presidente da corte, Dias Toffoli.
Apesar de positiva, a proteção do discurso religioso não é suficiente
É preciso reconhecer que os ministros aprovaram uma salvaguarda até mais ampla que o imaginado no início do julgamento. O discurso religioso ficou protegido, nos termos sugeridos pelo relator Celso de Mello: tanto líderes religiosos quanto leigos têm o direito “de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica”, em locais públicos e privados, bastando que “tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”. Uma surpresa sem dúvida positiva, pois afasta as ameaças de violação à liberdade religiosa.
No entanto, apesar de positiva, a proteção do discurso religioso não é suficiente. Isso porque, como já lembramos, as críticas ao comportamento homossexual e a realidades dele derivados, como a oposição à união homoafetiva, nem sempre se baseiam em argumentos religiosos, mas também em considerações de ordem antropológica, ética e biológica. E aqui reside uma enorme contradição na decisão do Supremo, uma omissão perigosíssima. Afinal, quando decidiram proteger o discurso religioso, os ministros reconheceram que é possível fazer uma crítica e promover um debate sobre tais temas sem recorrer à violência, à hostilidade e à discriminação. Então, chega a ser inacreditável que a corte tenha percebido tal realidade no caso do discurso religioso, mas não a tenha visto nas demais situações.
A consequência de o discurso de base não religiosa não ter merecido a mesma atenção dos ministros do Supremo é a criação de um limbo jurídico que, na prática, ameaça e inviabiliza qualquer discussão sobre o comportamento homossexual. Sem a mesma proteção oferecida ao discurso religioso, grupos militantes poderão acionar a Justiça contra o que considerarem “discurso de ódio”, mesmo que tal discurso não represente nenhuma incitação à violência ou hostilidade contra a população LGBT. O resultado será, na prática, uma perseguição ideológica até o ponto em que as críticas de teor não religioso deixem de ser feitas, por medo de processos judiciais. O país viverá uma situação surreal de um “tabu sexual inventado”, em que toda a discussão sobre um tema de moral sexual estará juridicamente vedada, algo que não ocorreu nem mesmo nas épocas mais moralistas e “repressoras”.
Outro vácuo deixado pelos ministros diz respeito à objeção de consciência – mesmo quando motivada por convicções religiosas, já que a salvaguarda criada por Celso de Mello parece aplicar-se a manifestações de opinião, mas não necessariamente à prestação de serviços em eventos que contrariem as convicções de um profissional. É possível que vejamos, no Brasil, uma repetição de casos recentes ocorridos nos Estados Unidos, onde a objeção de consciência já chegou aos tribunais, mas ainda não foi devidamente protegida. Veja-se, por exemplo, o caso do confeiteiro Jack Phillips, que venceu um processo na Suprema Corte americana após se recusar a preparar um bolo para uma união homoafetiva, e agora enfrenta nova batalha judicial por ter se recusado a fazer um bolo para comemorar uma “mudança de gênero” por parte de um cliente. O novo processo é sinal de que militantes LGBT estão deliberadamente procurando prestadores de serviço que têm convicções cristãs, com o objetivo de forçar uma situação de “discriminação” que permita levar esses profissionais à Justiça e inviabilizar seu trabalho.
Se há algum consolo, é o fato de que, de acordo com a decisão do STF, a equiparação entre o racismo e a homofobia valerá apenas enquanto o Congresso não aprovar lei específica sobre o tema. Por isso, os projetos em tramitação no Legislativo se revestem de especial importância, inclusive pelo fato de nenhum deles, até o momento, combinar o efetivo combate à discriminação e à violência com a proteção das liberdades de expressão, religiosa e da objeção de consciência – basta ver que as emendas feitas a um dos projetos no Senado protegem apenas o discurso religioso, assim como fez o STF, reproduzindo a mesma cegueira que deixa desprotegidos os argumentos cujo fundamento não é religioso. Há tempo, felizmente, para deputados e senadores promoverem essa correção de rumos. E, se ela vier e for contestada, que o Supremo saiba reconhecer os seus limites e aceitar o trabalho legislativo, sem a pretensão de derrubar uma lei apenas por não a considerarem conforme às próprias convicções.
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